Nesta análise, discutimos os resultados de duas pesquisas brasileiras sobre condições de trabalho dos jornalistas, apresentadas no 17o Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).
Numa semana em que o governo Bolsonaro tomou medidas para acabar com a exigência de registro profissional para jornalistas, falar sobre as condições de trabalho dos profissionais parece bastante pertinente, certo? Já adianto que o texto de hoje não mostra um cenário muito otimista mas, talvez por isso mesmo, seja tão necessário.
Dois artigos científicos apresentados na sessão coordenada “Autonomia e constrangimentos no exercício da profissão de jornalista”, no 17o Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor) serão o fio condutor desta análise. Assisti às apresentações das autoras, que renderam ótimas discussões entre os pesquisadores que estavam em Goiânia no último dia 8. A lista com todos os artigos apresentados no congresso está aqui.
Liana Haygert Pithan, Janaína Kalsing e Ana Cláudia Gruszynski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), discutiram a relação entre as demissões em massa de jornalistas e as métricas de audiência, identificando-as como sintomas da gestão gerencialista nas empresas jornalísticas.
Já na introdução, elas dão a real: dizem que as transformações que afetam o jornalismo neste século extinguem, fragmentam e recombinam a prática laboral dos jornalistas, expulsam da profissão milhares de trabalhadores e pressionam os remanescentes para desempenhar mais tarefas mais rapidamente e obedecer a valores muitas vezes contrários aos de ofício.
Essas transformações, segundo argumentam as autoras, operam sob a gestão gerencialista, conceituada por Gaulejac (2007). Nela, há o estímulo de competição, luta por desempenhos e resultados, e isso afeta todas as esferas da vida, não só o trabalho. Vejam o que diz Gaulejac:
“Sob uma aparência objetiva, operatória e pragmática a gestão gerencialista é uma ideologia que traduz as atividades humanas em indicadores de desempenhos, e esses desempenhos em custos ou em benefícios […] é uma mistura não só de regras racionais, de prescrições precisas, de instrumentos de medida sofisticados, de técnicas de avaliação objetivas, mas também de regras irracionais, de prescrições irrealistas, de painéis de bordo inaplicáveis e de julgamentos arbitrários. Por trás da racionalidade fria e “objetiva” dos números dissimula-se um projeto “quantofrênico” (a obsessão do número), que faz os homens perderem o senso da medida”.
As autoras situam o enxugamento das redações brasileiras dentro dessa estratégia organizacional. Na “era do downsizing”, o lucro da organização não garante mais a expectativa de manutenção do emprego, a segurança no trabalho pertence ao passado e os empregadores não estão mais em condições de prometê-la.
Como consequência, o jornalismo foi considerado a ocupação mais desfavorável nos anos de 2013, 2015, 2016 e 2017 pelo site CareerCast, em um ranking de 200 profissões – em 2019, das 224 ocupações, ficou na posição 222.O levantamento considera dados como renda, oportunidades de ascensão na carreira, condições laborais e de saúde. Dentre as motivações que justificam a posição, o estudo lista a perda de prestígio da imprensa, a crise no modelo de publicação impresso, o enxugamento de postos de trabalho, a alta pressão nas redações e a migração de profissionais qualificados para áreas vizinhas, como o setor publicitário e de relações públicas.
As autoras lembram que, pela perspectiva de profissionalismo organizacional, é a gestão que define objetivos e padrões e, portanto, o que tem valor “profissional”. Para elas, em um campo economicamente instável, o bom jornalista se mede, então, pela capacidade de gerar audiência, por meio de cliques nas homepages ou de boas práticas de SEO, de trabalhar ao vivo e de expressar a linguagem do emocional e do sensacional.
A busca de audiência, então, sobrescreve os valores de ofício na tomada de decisão em diferentes níveis:
(a) o tráfego influencia a avaliação de editores sobre produzir ou não determinada notícia, continuar coberturas ou cobrir fatos parecidos;
(b) os números determinam a seleção, a remoção e a posição de chamadas na homepage;
(c) os títulos são criados ou reescritos para obter cliques;
(d) fotografias ou outras imagens são usadas para tornar as matérias mais “clicáveis”;
(e) como o acesso via smartphones aumentou, os conteúdos são estruturados para serem lidos nesses meios e
(f) o volume de audiência das matérias é parâmetro para avaliar o desempenho dos autores e mesmo recompensá-los financeiramente.
E não pára por aí.
Condições de trabalho ruins afetam a qualidade da informação jornalística
O artigo de Janara Nicoletti é um fragmento de sua tese de doutorado, que será defendida em dezembro, na Universidade Federal de Santa Catarina. Entre os meses de abril e junho de 2019, 174 jornalistas responderam ao survey online, sendo que 124 atuavam em funções de mídia, na imprensa.
Para o artigo foram consideradas as 122 respostas válidas de jornalistas da mídia que atuam no Brasil, e selecionadas as variáveis demográficas (que ajudam a entender o perfil dos respondentes), além de três questões matrizes: recursos disponíveis (avalia a infraestrutura do ambiente e os equipamentos necessários para o trabalho); impactos da infraestrutura na rotina (solicita a análise sobre em qual nível a infraestrutura disponível no ambiente de trabalho afeta o desempenho do trabalhador) e edição jornalística (avalia práticas de edição de conteúdo, como tempo para produção, presença de erros, correção, respeito a padrões éticos.
Nicoletti destaca que os dados demográficos obtidos seguem algumas tendências indicadas por outros estudos sobre condições de trabalho dos jornalistas, como feminização, juvenilização, baixos salários, alta rotatividade e carreira de curta duração. Quando se observa o tempo de trabalho, percebe-se um grupo de trabalhadores em início de carreira ou entrando na primeira década de profissão. Já quando se trata do tempo na mesma empresa, é possível perceber traços da alta rotatividade.
Entre os respondentes é observada também uma alta taxa de escolaridade, em contraponto com uma baixa remuneração salarial. A maioria dos entrevistados (36,67%) recebe até R$ 2998, ou seja, entre dois e três salários mínimos. Em seguida, a segunda faixa salarial com mais respostas é entre três e quatro salários, isto é, não mais que R$ 3.992. Em contrapartida, a maioria possui nível superior e um percentual significativo, complementou os estudos formais com mais um título: graduação (50%), especialização (32,79%), mestrado (9,84%) e doutorado (1,64%).
Na análise, Nicoletti percebeu traços da precariedade do trabalho também no desempenho dos profissionais. Os dados do grupo edição mostram efeitos do acúmulo de funções e da intensidade da rotina. Na amostra coletada, 51,63% dos respondentes alegam sempre (13,93%) ou com frequência (32,78%) não terem tempo suficiente para concluir seus trabalhos de forma adequada. Outros 37,70% afirmam às vezes não terem tempo.
A partir dos resultados (vale a pena ler o artigo para entender todas as perguntas e respostas), Nicoletti afirma que há correlações positivas entre indicadores de “Condições de trabalho” e “Desempenho” representados pelos recursos disponíveis e tomadas de decisão no processo de edição do conteúdo jornalístico.
“Mesmo se tratando de um número muito pequeno de variáveis, percebe-se que a precariedade do jornalismo aparece em diferentes níveis. Além de acompanhar resultados de pesquisas anteriores, a amostra não-representativa coletada permite fazer inferências importantes com relação a associação entre os dois grupos de indicadores analisados. Mais do que isso, pode-se observar que existe uma baixa adequação das necessidades laborais para o desenvolvimento do trabalho em comparação com a expectativa de alta produtividade e qualidade impostas pela dinâmica do mercado e exigência do público”.
Os dois trabalhos tocam na questão da precarização do trabalho jornalístico de maneiras distintas, mas ambos mostram um cenário bastante desfavorável para o exercício da profissão. Em tempos de ataques aos jornalistas, parece urgente falar sobre isso, né? Quer contribuir com a discussão? Escreva pra gente.