Edição recém-lançada da revista New Media & Society traz nove artigos sobre dois subcampos emergentes: epistemologias do jornalismo digital e o estudo da desinformação.

Acaba de sair uma edição especial da revista New Media & Society sobre jornalismo digital. No texto de introdução, os editores convidados Mats Ekström, Seth C. Lewis e Oscar Westlund lembram que as atividades epistemológicas dos jornalistas – presumidamente fornecendo informações públicas factuais e confiáveis – tornaram o jornalismo uma das instituições mais influentes na produção de conhecimento da sociedade. No entanto, mudanças lentas e súbitas relacionadas à digitalização da mídia e à difusão de desinformação estão desafiando o papel social e a autoridade do jornalismo. 

Para avançar nessa discussão, a edição reflete sobre a pesquisa em dois subcampos emergentes: (1) epistemologias do jornalismo digital e (2) o estudo da desinformação.

Sobre o primeiro subcampo, cabe a pergunta: o que são epistemologias do jornalismo digital? 

Os editores explicam que diversos pesquisadores estudam aspectos e formas da epistemologia jornalística há décadas, desde jornalismo investigativo, jornalismo de televisão até o surgimento dos blogs e liveblogs. Nos últimos anos, houve um aumento na pesquisa de diversas epistemologias do jornalismo digital, que inclui questões sobre fontes online, jornalismo e big data, assim como pesquisas sobre os aspectos empíricos e conceituais do jornalismo de dados e epistemologia. Houve também o desenvolvimento de pesquisas sobre conceitos como jornalismo automatizado e jornalismo mensurável, que ilustram os aspectos epistemológicos em jogo nas combinações de métricas, máquinas e produção de notícias, da mesma forma que houve uma nova ênfase nas práticas epistêmicas de jornalistas nas plataformas de mídia social.

Segundo eles, esses e outros estudos sobre epistemologias do jornalismo digital apontam para o “deslocamento” das notícias, à medida que passam de plataformas produzidas e controladas pela mídia tradicional para plataformas fora de sua jurisdição, complexificando o funcionamento das notícias como conhecimento. E foi com base nesse crescente interesse e produção acadêmica que os editores propuseram que esta edição fosse vista como um avanço no subcampo de pesquisa “Epistemologias do Jornalismo Digital”. Eles explicam que o termo no plural é usado para reconhecer que existe uma variedade de formas diferentes de conhecimento, práticas de produção de conhecimento e justificativas de reivindicações de conhecimento no jornalismo digital.

O estudo da desinformação

O segundo subcampo emergente é o estudo da desinformação. Parte-se do pressuposto de que as informações verificadas e baseadas em fatos sejam uma característica importante da sociedade, para os cidadãos individualmente e para a governança democrática como um todo. Durante grande parte do século XX, a mídia de referência teve uma posição de destaque na tentativa de cumprir esse papel, relatando acontecimentos e desenvolvendo padrões, normas e métodos que lhes permitiram reivindicar conhecimentos

No entanto, há uma mudança contínua, mas gradual, da mídia tradicional para a mídia digital. Por um lado, essa mudança abriu novos caminhos para o acesso e distribuição de notícias em uma variedade de plataformas – social, móvel, aplicativos e similares. Por outro lado, essa mudança enfraqueceu os modelos de negócios das organizações de mídia tradicionais, resultando no enfraquecimento e redução do tamanho das redações e na fragmentação do público, levantando questões sobre a viabilidade do jornalismo em produzir informações confiáveis. 

Os editores acrescentam mais um ingrediente a esse contexto: a mudança mais repentina no cenário da informação é a capacidade de uma ampla variedade de atores para semear dúvidas por meio de desinformação, circular teorias da conspiração, fornecer “fatos alternativos” ou questionar a mídia. E isso ocorre no momento em que muitas pessoas parecem ter pouca confiança na imprensa. A difusão da desinformação levou a um amplo debate sobre o que alguns chamam de era “pós-verdade”. Segundo os editores, esses desenvolvimentos apontam para muitas oportunidades de pesquisa e teoria. 

Uma questão geral diz respeito a como as epistemologias do jornalismo – reivindicações de conhecimento, normas e práticas – são moldadas pelas mudanças e desafios na produção de notícias digitais. Como os jornalistas sabem o que sabem e como suas reivindicações de conhecimento são articuladas e justificadas? Além disso, eles apontam que é essencial entender melhor como os cidadãos percebem as notícias, “falsas” ou não. Os cidadãos também precisam de conhecimentos de mídia e habilidades de crítica para avaliar a qualidade da informação? O que constitui essa alfabetização e como ela responde às condições de conhecimento do ambiente digital contemporâneo? 

Muitas questões interessantes, né? A seguir, apresentamos o título e resumo dos 9 artigos da edição, que dão uma boa noção dos estudos. Caso você queira ler o artigo completo, basta clicar no título. Nem todos estão abertos, mas pra isso existe o sci-hub, certo? Uma outra opção é entrar em contato com o autor, eles costumam ser gentis e compartilhar com quem solicita.

1. Epistemologia social como um novo paradigma para o jornalismo e estudos de mídia
Yigal Godler, Zvi Reich e Boaz Miller

Os estudos de jornalismo e mídia carecem de conceitos teóricos robustos sobre a geração de conhecimento jornalístico. Mais especificamente, há desafios conceituais relacionados ao surgimento de big data e de fontes algorítmicas de conhecimento jornalístico. Um grupo de frameworks aptos a esse desafio é fornecido pela “epistemologia social”: um campo filosófico recente que considera inevitável a participação da sociedade na geração de conhecimento. A epistemologia social oferece o melhor de dois mundos para jornalistas e estudiosos da mídia: uma profunda familiaridade com preconceitos e falhas na obtenção de conhecimento e uma forte orientação para melhores práticas no campo da aquisição de conhecimento e busca da verdade. Este artigo articula as lições da epistemologia social para dois nós centrais da aquisição de conhecimento no jornalismo contemporâneo:o  conhecimento mediado por humanos e o conhecimento mediado pela tecnologia.

2. Epistemologia jornalística e circulação de notícias digitais: infraestrutura, práticas de circulação e disputas epistêmicas
Matt Carlson

O ambiente de mídia digital provoca muitas perguntas sobre o estado do jornalismo como uma prática de produção de conhecimento. Como uma forma de avaliar como as novas práticas digitais de notícias se conectam à autoridade epistêmica dos jornalistas, este artigo combina a ênfase de Ekström na epistemologia jornalística como uma prática social de produção de conhecimento com a conceituação de circulação de Bødker, tanto como uma forma de transmissão de informações quanto como um lugar para produção de significados compartilhados sobre jornalismo. Para desenvolver um modelo de análise das consequências epistêmicas da circulação digital de notícias, três componentes são explorados: infraestrutura, práticas de circulação e disputas epistêmicos. Esses componentes consideram, respectivamente, a materialidade da mídia digital, vários padrões de uso que surgem e as lutas públicas sobre quais notícias como forma de conhecimento devem parecer e quem deve produzi-las.

3. Cartografia de notícias e autoridade epistêmica na era do big data: jornalistas como criadores, usuários e sujeitos de mapas
Nikki Usher

Embora a desestabilização da autoridade epistêmica do jornalismo tenha sido amplamente discutida, um elemento crítico foi subexplorado – o papel do “onde”. Para os jornalistas, reivindicar procedência sobre o “onde” permitiu o controle de um domínio do conhecimento, e um dos principais meios para fazer isso foi a cartografia noticiosa, agora renderizada digitalmente. No entanto, a cartografia digital de notícias (mapas digitais de notícias) expõe a autoridade epistêmica dos jornalistas a novos desafios, da dependência de grandes dados coletados por outros a mapas sobre o próprio jornalismo, que mostram a autoridade diminuída dos jornalistas sobre o “onde”. O caso dos mapas de notícias digitais oferece a chance de interrogar como os jornalistas sabem o que sabem e, de maneira mais ampla, levanta a questão de como o local e o mapeamento devem ser considerados na pesquisa de novas mídias.

4. A reciprocidade sustentada entre jornalista e audiência em um meso novo espaço: o caso de um grupo jornalístico no WhatsApp
Neta Kligler-Vilenchik e Ori Tenenboim

Ao engajar-se com jornalistas no ambiente de mídia em rede, as audiências podem desempenhar um papel na formação das epistemologias do jornalismo: como os jornalistas sabem o que sabem e como comunicam o conhecimento que alegam. Embora tenham sido oferecidas à audiência oportunidades de se engajar em processos de produção de notícias, são raros os relacionamentos recíprocos entre jornalistas e audiência online. Este estudo mostra como a reciprocidade sustentada ocorre em um grupo de WhatsApp em larga escala aberto por um jornalista/ blogueiro israelense para sua audiência. Com base em uma análise de conversas em grupo, postagens em blogs e entrevistas, demonstramos como uma conversa contínua entre a jornalista e seus fiéis membros da audiência permite a co-construção do conhecimento jornalístico em todo o processo de produção de notícias. O espaço online que oferece trocas recíprocas é denominado aqui um meso espaço de notícias, ocorrendo entre as esferas privada e pública. Este estudo contribui para entender como a reciprocidade sustentada pode ser alcançada e como pode promover benefícios compartilhados para jornalistas e membros da comunidade.

5. “Vemos mais porque não estamos lá”: normas de fonte e rotinas na cobertura do Irã e Coréia do Norte
Soomin Seo

Com base em entrevistas e visitas à redação, este estudo explora uma hierarquia epistemológica de fontes e canais de fontes que difere substancialmente das normas das formas mais tradicionais de jornalismo. Dois veículos de nicho que cobrem a Coréia do Norte e o Irã são escolhidos para análise. Como esses países são notoriamente hostis a correspondentes estrangeiros, muitas vezes é difícil obter notícias confiáveis. Os jornalistas que trabalham nessas novas agências preferem plataformas digitais a observações em primeira mão, argumentando que as primeiras são mais capazes de combater a desinformação predominante “na rua”. Além disso, existe uma ampla colaboração global que tira proveito das diferenças de distância e tempo para produzir mais notícias confiáveis ​​sobre o Irã e a Coréia do Norte. Sem ter que se preocupar com a proibição do acesso, os jornalistas podem se concentrar em questões que consideram importantes. As descobertas são consistentes com o que os jornalistas sabem há muito tempo: pode ser vantajoso ver as coisas com a perspectiva adicional da distância.

6. A epistemologia do live blogging
Donald Matheson e Karin Wahl-Jorgensen

Este artigo propõe uma tipologia da epistemologia do live blogging por meio da análise de dois live blogs: o da Radio New Zealand (RNZ) News sobre um grande terremoto em Aotearoa em novembro de 2016 e o da BBC News resultado do referendo do Brexit em junho de 2016. Utilizamos esses casos para extrair cinco recursos do gênero que que podem caracterizar outros live blogs. Demonstramos que esses blogs tendem a (1) produzir uma narrativa fragmentada que (2) reflete momentos particulares no tempo, (3) fazem curadoria de uma variedade de objetos de texto de diversas fontes de informação para produzir um ‘equilíbrio em rede’, (4) ganham coerência de uma voz ou vozes autorais frequentemente informais e (5) geram reivindicações ao conhecimento de eventos que são simultaneamente dinâmicos e frágeis. Essa tipologia contribui para entender a posição do jornalismo nos espaços de informação em rede.

7. “Fake news” como um estranho infra-estrutural
Jonathan Gray, Liliana Bounegru e Tommaso Venturini

Neste artigo, examinamos como o distúrbio social precipitado por ‘fake news’ pode ser visto como uma espécie de estranho infra-estrutural. Sugerimos que a ameaça de lixo eletrônico problemático e viral pode levantar questões existenciais sobre a rotina de circulação, engajamento e monetização de conteúdo por meio da Web e das mídias sociais. Impulsionados pelos efeitos perturbadores associados ao escândalo das ‘fake news’, propomos táticas metodológicas para explorar (1) a economia de links e o ranqueamento de conteúdo, (2) a economia de likes e a metrificação do engajamento e (3) a economia rastreadora e a comoditização da atenção. Em vez de focar no conteúdo enganoso das notícias ‘junk’, essas táticas emergem das condições de infraestrutura de sua circulação, permitindo que intervenções e experimentos públicos interroguem, desafiem e mudem seu papel na reconfiguração das relações entre diferentes aspectos da vida social, cultural, econômica e política.

8. Disciplinar e promover: construindo infraestrutura e gerenciando algoritmos em um projeto de “jornalismo estruturado” por grupos profissionais de fact-checking
Lucas Graves e CW Anderson

As organizações de notícias se adaptaram de várias maneiras a um ambiente de mídia digital dominado por algorítmicos gatekeepers, como mecanismos de pesquisa e redes sociais. Este artigo analisa uma campanha para moldar ativamente esse ambiente liderado por organizações profissionais de fact-checking. Nós rastreamos o desenvolvimento do widget Share the Facts, um dispositivo projetado para dar aos fact-checkers maior controle em redes de mídia governadas por algoritmos, impulsionando a adoção de um novo padrão de dados chamado ClaimReview. Mostramos como o “jornalismo estruturado” deu aos jornalistas uma linguagem para os desafios sociais e técnicos envolvidos, e como essa tecnologia de infra-estrutura faz a mediação entre verificadores de fatos, audiências e empresas de plataformas. Argumentamos que essa iniciativa de estabelecimento de padrões exibe facetas tanto promocionais quanto disciplinares, oferecendo maior distribuição e impacto aos jornalistas, além de definir seu trabalho de maneiras específicas. Fundamentalmente, nesse caso, essa influência disciplinadora reflete agendas internas profissionais e institucionais em um subcampo emergente do jornalismo, assim como demandas das empresas de plataforma.

9. Epistemologias pessoais da mídia: Criticidade seletiva, confiança pragmática e competência – confiança na navegação de repertórios de mídia na era digital
Christian Schwarzenegger

Embora os perigos das mídias sociais, fake news e a alegada desconfiança nas mídias de referência tenham conquistado considerável atenção do público, as implicações dessas narrativas públicas para a audiência permanecem pouco estudadas. O objetivo deste artigo é identificar as conseqüências de uma emergente “narrativa das fake news e da era da pós verdade” para as epistemologias pessoais dos usuários de mídia, crenças na mídia e práticas de navegação de notícias sob a perspectiva do repertório de mídia. Quarenta e nove entrevistas em profundidade com pessoas de três faixas etárias diferentes e com repertórios diferentes de mídia foram realizadas. Com base no estudo, as três dimensões inter-relacionadas (1) criticidade seletiva, (2) confiança pragmática e (3) competência-confiança foram desenvolvidas para analisar a navegação de notícias pelos usuários. Essas três dimensões podem ser aplicadas a outros cenários para investigar como as pessoas navegam nos repertórios da mídia e interagem com as notícias em geral.