No último relatório do Journalism Innovation Project do Reuters Institute, Julie Posetti, Felix Simon e Nabeelah Shabbir se debruçam sobre a realidade do Rappler, nas Filipinas; Daily Maverick, na África do Sul; e The Quint, na Índia. Para os autores, a escala está destruindo comunidades online em países que sofrem com desinformação e ataque à liberdade de imprensa e aos jornalistas.

Engajamento da audiência é um tema recorrente nas newsletters do Farol Jornalismo. Na NFJ #161, trouxemos duas perspectivas distintas: a Terry Parris Jr., então editor de Engajamento da ProPublica, que vê o engajamento como uma ferramenta para o jornalismo, e não apenas para distribuição nas redes sociais ou para as seções de comentários. 

“Eu acredito que reconhecer o crowdsourcing e o engajamento dessa maneira muda seu pensamento sobre como você pode utilizar o público para jornalismo – não apenas para o tráfego de referência. Sabemos que nós nem sempre temos a resposta. Mas o público pode ter. Então, vamos perguntar”.

Já Adam Smith, editor de Comunidade do The Economist, afirma que o trabalho de um editor hoje está entre responder o que o público está dizendo e usar seu próprio julgamento para publicar o que é de interesse dele.

“The Economist tende à última abordagem. Chame isso de soberania editorial. Nós observamos histórias em que nosso público passa muito tempo, ou outras formas de engajamento, mas não permitimos que esses dados gerem decisões sobre quais histórias vamos publicar depois”.

Na NFJ #183 questionamos: engajamento da audiência é modinha ou relevante? Após passar três meses na redação da Hearken, que oferece serviços de engajamento da audiência para empresas jornalísticas, Jacob Nelson concluiu que a startup norte-americana é incapaz de quantificar os benefícios do que oferecem.

“Existem poucos dados empíricos que podem corroborar com a crença de que a falta de confiança do público no jornalismo pode ser resolvida com o aumento do engajamento da audiência. As pesquisas realmente mostram que o público está descrente das notícias, e que modelos de negócio de empresas jornalísticas são cada vez mais vistos como insustentáveis – mas nenhum estudo determinou claramente que essas circunstâncias melhorarão quando as redações convidarem seu público para o processo de produção das notícias”.

Já na NFJ #193 compartilhamos um artigo de Jennifer Brandel, CEO da Hearken. Segundo ela, muitas vezes, quando se trata de envolver as comunidades, agimos como idiotas.

“Pedimos sua história, extraímos suas experiências e preocupações, e depois empacotamos e compartilhamos com o público para nosso próprio ganho financeiro. Nós não agradecemos, não perguntamos o que eles precisam, apenas pedimos o que precisamos deles”.

E na NFJ #198 demos três exemplos de veículos que perceberam o valor da interação com a audiência, em diferentes níveis.

Ufa! Depois dessa retrospectiva, vamos à análise da semana que, claro, trata sobre engajamento. O estudo de Julie Posetti, Felix Simon e Nabeelah Shabbir me chamou muita atenção por investigar veículos fora do eixo EUA-Europa, que enfrentam contextos bastante adversos: Rappler, nas Filipinas; Daily Maverick, na África do Sul; e The Quint, na Índia. Essa perspectiva do Sul Global integra o Journalism Innovation Project do Reuters Institute (falamos sobre o primeiro estudo deste projeto na NFJ #212).

Os autores começam lembrando que mudanças dramáticas no cenário da mídia nas últimas duas décadas – incluindo o advento das mídias sociais, o aumento do público participativo e o que chamam de “captura de plataforma” – exigiram a transformação do relacionamento do jornalismo com os consumidores de notícias. Ou seja, a inovação no engajamento do público tornou-se essencial para a sustentabilidade dos veículos, e essa interação tem sido feita, majoritariamente, em plataformas abertas que dispõem de públicos em larga escala.

Mas e se a escala estiver destruindo as comunidades? Para os autores, a falta de mediação e a desinformação orquestrada (que muitas vezes se volta contra jornalistas especialmente em contextos de populismo e autoritarismo) são apenas alguns fatores que prejudicam a construção de comunidades realmente engajadas. 

Os três veículos estudados começaram como publicações nacionais que agora estão causando impacto, construindo audiências internacionalmente e recebendo prêmios por suas atuações independentes. No entanto, operam em países que caíram no ranking mundial de liberdade de imprensa; “A situação é particularmente ruim nas Filipinas, onde o Rappler está lutando contra 11 processos do Estado, e, se condenada, a CEO Maria Ressa pegará 63 anos de prisão”, diz o relatório.

Respondendo à “captura de plataforma” 

Para os autores, “captura de plataforma” é uma combinação de alguns fatores:

  • A manipulação das plataformas e sua base de usuários em massa para fins maliciosos, como campanhas de desinformação orquestradas, projetadas para desestabilizar democracias;
  • O encorajamento dessa dependência pelas próprias plataformas, que frequentemente mudam as prioridades de distribuição e engajamento, expressas por meio de algoritmos que passam da ampliação para a atenuação do conteúdo noticioso;
  • O excesso de confiança de algumas organizações de notícias nas mídias sociais para distribuição engajamento do público.

Assédio online a jornalistas (em particular, às mulheres), uma variedade de ameaças à segurança digital direcionadas a seus sites e comunidades online esfriaram a interação do público. Rappler, Daily Maverick e The Quint responderam assim a esses problemas:

  • Aconselharam seus jornalistas a se retirarem (pelo menos temporariamente) do engajamento em mídias sociais em tempo real, fecharam comentários ou os ofereceram como funções apenas para assinantes; acabaram com plataformas de blogs dos cidadãos, encerraram projetos com organizações parceiras que se tornaram hostis ou se retiraram em resposta à pressão política.

Em resumo, a escala arruinou  comunidades digitais abertas nas quais essas organizações de notícias foram construídas.

Criando comunidades de nicho e membership

Rappler Plus, Maverick Insider e Quint Premium são as iniciativas de membership capitaneadas pelos três veículos. O estudo destaca que o programa de maior sucesso é o do Daily Maverick (representa 22% da receita), que nunca adotou completamente as mídias sociais (além do mínimo de distribuição de conteúdo), preferindo o envolvimento offline com o público e formas mais fechadas de interação online.

Argumentos como defesa da verdade e da democracia são utilizados pelas três organizações para convencer o público a contribuir financeiramente. No caso do Rappler, as comunidades mais leais também contribuíram para sua defesa legal, no caso dos processos de Maria Ressa. Em setembro de 2019, o programa de membership do Rappler havia arrecado 200.000 dólares.

Vejam a distribuição das receitas nos três veículos:

O engajamento do público como um ciclo

No processo de recalibrar o envolvimento do público em resposta à captura de plataforma e ataques políticos, essas organizações estão completando um ciclo: lembram a importância de criar relacionamentos mais profundos, mais estreitos e mais fortes com seus públicos, enfatizam o encontro físico e o investimento em nichos de audiência.

De acordo com um dos editores do Daily Maverick, a inovação não deve ser alardeada.

 “Eu acho que é descobrir onde estão as audiências e depois contar histórias de maneiras interessantes que as fazem pensar de maneira diferente… Eu aprendi que talvez o seu fim não deva ser o de criar grandes audiências. Talvez o que você deseja seja um público de qualidade menor que fique com você e que contribua financeiramente”.

Principais conclusões

Vejam abaixo as descobertas-chave do estudo de Julie Posetti, Felix Simon e Nabeelah Shabbir:

  • O relacionamento com as comunidades não resiste à escala. A escala pode quebrar comunidades, especialmente quando combinada com várias formas de captura de plataforma, incluindo as mudanças frequentes nos produtos e políticas das plataformas.
  • Públicos menores engajados ainda podem desempenhar um papel significativo por meio da colaboração, distribuição e impacto.
  • As campanhas orquestradas de assédio online direcionadas a veículos e seus jornalistas podem ser extremamente prejudiciais (criando riscos significativos para a saúde, a segurança e a proteção), mas também para suas comunidades online, impactando significativamente no trabalho de engajamento.
  • O envolvimento cívico por meio de parcerias comunitárias e iniciativas de denúncia de cidadãos (por exemplo, o Move.PH do Rappler e o MyReport do Quint) podem oferecer bons caminhos a novos fluxos de receita, mesmo que alguns públicos “em escala” tenham se tornado tóxicos.
  • Apesar dos riscos reais identificados, ainda são possíveis parcerias com as plataformas conectadas ao trabalho de engajamento, como mostra o uso continuado de mídias sociais e projetos específicos, como a campanha “Me, the change“, do The Quint, sobre orientação de gênero.
  • A escuta bidirecional é essencial para o desenvolvimento de comunidades de ação fortes e leais, construídas em torno de missões editoriais. Mas nem as organizações de notícias, nem os jornalistas individuais precisam ouvir todas as pessoas o tempo todo.
  • A criação de um programa de membership não é simples e, nesses estudos de caso, geralmente envolve a combinação de elementos existentes (eventos, parcerias comunitárias, portais de denúncias de cidadãos) com novas abordagens (newsletters personalizadas, acesso a conteúdo dos bastidores).
  • Públicos e membros leais podem ser vistos como guardiões dos meios de comunicação cuja missão é produzir jornalismo independente em países onde a liberdade da mídia está ameaçada.