O texto abaixo foi lido pelo jornalista e professor Pedro Luiz da Silveira Osório na mesa “O jornalismo como forma de conhecimento: o legado de Adelmo Genro Filho“, do 19º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), que aconteceu de forma online entre os dias 9 e 12 de novembro de 2021. Foram realizadas pequenas modificações em relação à fala original em benefício da clareza.
Por Pedro Luiz da Silveira Osório
Neste texto, espero conseguir ratificar de modo adequado a atualidade do pensamento de Adelmo Genro Filho, retomando sinteticamente seus principais conceitos e recorrendo a algumas lembranças do nosso convívio. Fomos contemporâneos, como alunos, no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria, na década de 1970. Militamos no movimento estudantil, em organizações políticas clandestinas e legais. Mantivemos uma interlocução afetiva e também profissional, frequentemente abordando aspectos do jornalismo que nos envolvia de forma diversa.
Dizendo isso, começo desviando-me das questões relativas às extraordinárias transformações ocorridas nas comunicações, notadamente nos últimos dez anos, desbordando seus reflexos específicos na práxis jornalística e eventuais decorrentes tensões exercidas sobre a teoria adelmiana. Essas tensões, não as ignoro nem as desconsidero, e por certo podem ser objeto de debate também aqui. Julgo, porém, que os pressupostos centrais da teoria adelmiana persistem sólidos, e a eles desejo me referir.
Pois as transformações às quais evoco e que bem conhecemos alteraram e estão a alterar significativamente, como sabemos, as formas de aquisição do conhecimento. Esta constatação nos aproxima da pedra angular da teoria em questão: o jornalismo como forma social de conhecimento, cuja força persiste, julgo.
Ao mesmo tempo em que pensa o jornalismo como uma forma de conhecimento, cuja potência epistemológica logo recordarei, Adelmo pensa a prática do jornalismo também como o exercício do conhecimento, na medida em que a apreensão da realidade de modo produtivo e jornalisticamente consequente presume um razoável conhecimento de tal realidade. Essa dimensão epistemológica da práxis jornalística constituía uma das suas principais preocupações quanto à compreensão e aplicação da sua teoria. Antes de tudo, dizia ele, o jornalista deve saber como conhecer a realidade, como dela se aproximar. Considerava esse atributo como algo prévio às técnicas da redação jornalística.
Sabe-se, claro, que para bem noticiar ao jornalista cabe a apropriação rápida e pertinente da realidade. Isso nos é evidente. Mas também nos são óbvias as dificuldades que enfrentamos para fazê-lo como repórteres, quando orientados predominantemente pelas indagações básicas do método jornalístico. E como docentes, quando procuramos oferecer aos nossos alunos e às nossas alunas referências epistemológicas que balizem uma aproximação razoavelmente segura da realidade a ser reportada.
Para Adelmo, a epistemologia representa um elemento chave do método jornalístico adequado à apreensão da realidade que será codificada. Uma apreensão compreensiva e crítica nos conduzirá de modo mais seguro à percepção da notícia em suas dimensões particulares e singulares, tal como ele as define. Nos protegerá da postura apologética, nos fará perceber as contradições do fato a ser reportado.
Pois a notícia socialmente útil será aquela que estabelecer os nexos não aparentes entre determinadas informações e fatos, desvendando aspectos essenciais da realidade abordada. Isto é: aspectos essenciais das relações sociais que, segundo ensina a boa filosofia, à primeira vista manifestam-se como fenômenos naturais. Perceber a realidade, perceber as relações sociais como efetivas decorrências das ações humanas com determinados propósitos, e não como situações naturalmente existentes, exige uma abordagem minimamente teórica.
Para Adelmo, portanto, dominar conceitos básicos da epistemologia é condição indispensável à prática do jornalismo. Conceitos esses que devem ser proporcionados aos futuros jornalistas, assim como a prática dos mesmos, aos quais recorrerão no exercício da profissão. Disso se pode depreender, portanto, que compreender e valorizar a teoria do conhecimento favorece a compreensão do jornalismo como uma forma social de conhecimento.
Passo, então, nos limites desta breve fala, a abordar o jornalismo como forma social de conhecimento, procurando destacar a sua potência epistemológica, como aludi. Quando não compreendemos a gênese do conhecimento produzido pelo jornalismo aumentam as possibilidades de que noticiemos fatos sem perceber a complexidade das suas origens, sem distinguir seus fenômenos geradores e a essência dos mesmos. Logo, tenderemos a abordar a realidade como “coisa dada” e a reproduzi-la acriticamente.
Aliás, a propósito da menção aos fenômenos, recordemos que na estrita abordagem teórica adelmiana não existem fatos por si mesmos, mas fenômenos – e isto adiante comentaremos.
Como outros autores, Adelmo refere-se ao surgimento do jornalismo evocando a superação do protocapitalismo pelo sistema capitalista, transcorrida entre os séculos XIV e XIX. O gradual ascenso da civilização burguesa e seu domínio planetário, que persiste, estimulou e mesmo determinou o surgimento e a consolidação de múltiplas formas e meios de informação e comunicação. Não foi, todavia – essa ênfase o diferencia dos demais – uma predominante determinação econômica e seus interesses conexos que basicamente produziram o advento do jornalismo, mas uma virtual imposição social. Desta decorreram meios de comunicação de massa e, deles, o jornalismo.
Quero destacar a ideia de uma “imposição social”, pois nela está a gênese do jornalismo definido como “forma de conhecimento social”. Como disse, diversamente da abordagem bibliográfica tradicional, Adelmo não credita predominantemente o surgimento do jornalismo e sua consolidação às imposições e necessidades do sistema capitalista.
Se assim o fizesse, de um lado ratificaria a versão funcionalista, segundo a qual o jornalismo progrediu porque, de modo dito objetivo e imparcial, historicamente produz informações que organizam e orientam a sociedade. Ou seja: reproduz e fortalece o já estabelecido. De outro lado, ratificaria determinada visão de esquerda segundo a qual o jornalismo é pura mercadoria e instrumento da dominação burguesa. E Adelmo se recusa a avalizar tais explicações, pois vê no jornalismo diferentes atribuições e possibilidades, potencialmente humanizadoras.
Sem deixar de reconhecer os interesses econômicos e de classe (burguesa, no caso), que permeiam o advento do jornalismo, ele sustenta que a informação jornalística surge e ganha espaço quando a sociedade, os indivíduos, passam a depender, para as suas existências, de informações que já não estão ao alcance das suas relações pessoais nos âmbitos da economia, da política, da religião – por exemplo. Informações cada vez mais vitais, na medida em que a aldeia se torna cada vez mais global.
Essa demanda social pelo jornalismo é também referida por outros autores, sabemos. Não com a principalidade que Adelmo lhe dá, acrescida de um atributo inédito: uma forma social de conhecimento está contida no jornalismo demandado. Sabemos, também, que as relações do jornalismo com o conhecimento são antigas – tema que o professor Eduardo Meditsch tem estudado, assim como outros autores.
Mas, como ensina a epistemologia, o núcleo de um conceito assenta-se nas suas premissas predominantes. Assim, o autor em questão sustenta que, de modo prevalecente sobre suas outras características e origens, o jornalismo (1) advém da demanda social, aqui representando o esforço vital do ser humano para apropriar-se do mundo mediato, isto é, o mundo do qual não pode se apropriar diretamente pelos seus sentidos, diversamente do que ocorre com o mundo imediato, cuja apreensão antes lhe garantia a sobrevivência; e (2) o jornalismo é uma forma social de conhecimento centrada na categoria filosófica denominada “singular”.
Valendo-se dessa categoria, Adelmo conceitua e explicita de modo revolucionário a geração de conhecimento proporcionada pelo jornalismo. Ele a conjuga, essa categoria denominada “singular”, com as categorias “particular” e “universal” originárias do pensamento filosófico, notadamente da filosofia clássica alemã. E o faz guiado pela dialética marxista que, referida de modo simples, sustenta que o ser precede a consciência e que as sociedades se estruturam coletivamente, no devir histórico, em permanente autoconstrução.
Estando a história humana em permanente movimento e transitoriedade, nela estão abrigados fenômenos físicos, sociais e culturais que modelam os seres humanos, enquanto são por estes modelados. Daí porque Adelmo sustenta que o jornalismo não lida originalmente com fatos, mas com fenômenos. É da percepção e interpretação destes, da compreensão e revelação de suas conexões, propósitos ou resultados que devem resultar os fatos constituintes da notícia.
Tais fatos devem ser relatados a partir de seus aspectos singulares, que o autor considera matéria-prima do jornalismo. Neles se cristalizam, ou para eles convergem, as dimensões particulares e universais do evento a ser narrado. Cabe ao jornalista escolher a dimensão singular que será destacada, por meio da qual estabelecerá os nexos com as particularidades do evento.
Assim, podemos relatar a destruição de um acampamento de sem-terras pela polícia a partir da cena, cena que eu vi, da mãe chorosa, a juntar o que sobrara do modesto enxoval de casamento que a filha distante vinha reunindo, adquirido com seu salário de empregada doméstica, enxoval cuidadosa e carinhosamente preservado em uma mala destruída e pisoteada pelos agressores.
Esta dimensão singular do ocorrido, por si só, nos conduz a um determinado tipo de conhecimento, nos remetendo à percepção das injustiças, desigualdades e opressões constituintes do mundo mediato, que assim se torna próximo, imediato. A singularidade será completada, na notícia, com as particularidades do evento, como a situação da reforma agrária, o quadro fundiário regional, a postura das autoridades responsáveis, por exemplo. Quanto às dimensões universais (e assim me refiro às três categorias adotadas por Adelmo), elas não integram o relato, mas o orientam.
As dimensões universais representam a nossa compreensão do mundo, a nossa capacidade de percebê-lo como um processo e como resultado da ação humana. Nesse momento, serão valiosos os ensinamentos epistemológicos que possamos ter tido. Eles orientarão a construção da matéria, partindo do aspecto singular escolhido. Sim, pois como antes assinalado, sempre teremos muitas singularidades à nossa disposição. A escolha que fizermos determinará se a matéria contribuirá para a perpetuação da desigualdade ou para a sua redução ou eliminação.
Seja como for, teremos proporcionado à sociedade um tipo de conhecimento. Como o conceituou Adelmo, teremos viabilizado uma forma social de conhecimento, por meio do jornalismo. Certamente conhecimentos sobre a questão agrária podem ser obtidos por meio da ciência, que transita pelo sistema educacional e oferece explicações de caráter universal. Ou por meio da arte, outra forma de conhecimento, que se cristaliza no típico, apoiado em particularidades.
Mas essas formas de conhecimento – a ciência e a arte – podem ser (geralmente são) de difícil acesso e, ademais, não acompanham o nosso cotidiano. Então o conhecimento necessário à nossa sobrevivência diária é suprido pelo jornalismo, ao reproduzir um evento pelo ângulo da singularidade. O jornalismo assim constitui-se como uma forma social de conhecimento, diversa das demais.
Naturalmente, matérias jornalísticas redigidas a partir de singularidades são publicadas há muito tempo, orientadas pela sensibilidade profissional dos repórteres e seus editores. O que fez Adelmo foi, de forma inédita, demonstrar teoricamente a potencialidade do singular para o método jornalístico e, a partir dele, tipificar o conhecimento oriundo do jornalismo.
Além disso, ao evidenciar que as manifestações singulares são muitas e nos cabe escolhê-las; ao demonstrar que os fatos narrados expressam determinadas conexões entre fenômenos, conexões estas que devemos perceber e apreender, para além do aparente, sua teoria dá combate aos conceitos de neutralidade e objetividade, tal como foram historicamente aceitos pelo jornalismo.
No caso da objetividade, sustenta que a objetividade pura não tem significação própria, sendo necessário extraí-la, sempre estabelecendo uma mediação com a objetividade concreta, para que a notícia não se reduza à concepção de quem a relata. No caso da neutralidade, sustenta que a captação de um fato constitui uma relação subjetiva do sujeito com a história.
Não se trata, porém, apenas de o jornalista perceber um fato e lhe atribuir uma qualidade, mas de perceber-se em um mundo em construção, onde ele se posicionará prática, teoricamente – e eticamente. Por fim, encerrando esta rápida digressão sobre a teoria do jornalismo formulada pelo Adelmo – de resto, abordada com profundidade e pertinência pelos dois outros professores desta mesa, em seus trabalhos – cumpre-me lembrar suas observações sobre o lide. Para ele, e pelas razões já expostas, a notícia se estrutura do singular para o particular, não necessariamente do mais importante para o menos importante. Todavia, na sua concepção, o lide não perde a importância, não deve ser desprezado, pois sua técnica inverte o processo de percepção do senso comum e nos coloca na cena do fato.
Encaminhando-me para o final desta exposição, espero ter deixado razoavelmente claros os aspectos básicos do jornalismo como forma de conhecimento. Abordá-lo requer mais do que reconhecer a sua potência epistemológica: é preciso não perder de vista que ela advém de um inovador sistema teórico-prático que revisa conceitos e altera técnicas clássicas do relato jornalístico.
Ao fazê-lo, o autor não pretende reivindicar para o jornalismo o estatuto de ciência social, mas sim qualificar a sua práxis. Ele reposiciona socialmente o jornalismo, permitindo-nos – e passo a citar Adelmo – “pensar a cultura em geral e o jornalismo em particular como práxis, não apenas como manipulação e controle. De um lado, em virtude da propriedade privada dos meios de comunicação e da hegemonia ideológica burguesa, o jornalismo reforça a cosmovisão dominante. De outro, a apreensão e reprodução do fato jornalístico podem estar alicerçadas na perspectiva de uma cosmovisão oposta e de uma ideologia revolucionária.’’
Tais observações parecem-me ilustrar adequadamente o legado de Adelmo Genro Filho. Não está posta a possibilidade revolucionária tal como ele a pensava, ao escrever seu clássico. Mas está sobre os nossos ombros a responsabilidade e a tarefa árdua de, por meio da práxis jornalística, contribuir para o fortalecimento de uma cosmovisão oposta àquela que hoje governa nosso país, bem como contribuir para a formulação e a disseminação de um sistema de ideias que proporcione o esclarecimento e a autonomia dos indivíduos, de modo que todos possam atribuir um sentido humano às suas vidas, construindo uma nação onde predomine a diversidade, a solidariedade e a igualdade.