Embora pareça ocupar um papel central no jornalismo atual, a audiência ainda é um enigma a ser desvendado. Vamos fundo nessa relação conflituosa a partir do novo estudo do Tow Center e apontamos algumas saídas. Análise exclusiva para nossos apoiadores.

Virou uma espécie de sabedoria da era digital: agora, jornalistas podem conhecer o comportamento da audiência de maneira muito mais detalhada do que em qualquer outro tempo na história da profissão. Mas será que as novas ferramentas da era digital estão influenciando a forma como os jornalistas pensam os leitores?

Esta nova pesquisa do Tow Center, da Universidade de Columbia, concluiu que não. Embora hoje os jornalistas pareçam mais abertos ao conhecimento da audiência, muito pouco mudou desde a era do impresso, que consta inclusive nos relatos etnográficos clássicos dos anos 1970.

Tenso, não? 

Antes de explicar melhor essa história, preciso falar sobre o autor da pesquisa, pois suas credenciais reforçam a importância do estudo. James Robinson é diretor de Global Analytics do The New York Times e passou a última década liderando a equipe de web analytics, desde a implementação do modelo de assinaturas digitais. É também professor adjunto e pesquisador da Escola de Jornalismo de Columbia. Ou seja, o cara manja do assunto.

Vejam as principais descobertas de Robinson:

  • Jornalistas reconhecem a obrigação de alcançar a audiência, mas têm receio de permitir que os leitores ditem o que é noticiável.
  • Ainda assim, a consciência dos potenciais leitores é fundamental. Embora esse pensamento sobre a audiência seja muitas vezes subconsciente (um instinto), as imagens que jornalistas usam para descrever o leitor pode ser bastante clara.
  • Na era do impresso, a audiência percebida pelos jornalistas estava dividida em 4 grupos principais: arquétipos que eles conheciam bem, seus pares profissionais, suas fontes e seus conhecidos íntimos e familiares. A entrada de perfis fora desses grupos era muitas vezes desconsiderada e segmentos de leitores menos conhecidos eram simplesmente excluídos. É claro que isso afetou as escolhas que os jornalistas fizeram ao selecionar, relatar e elaborar histórias.
  • Apesar do aumento das métricas e análises de audiência, essa percepção do leitor permanece praticamente inalterada na era digital. A aproximação entre jornalistas e público, tão falada atualmente, depende do entendimento desse problema.
  • Dada a importância que os pares e as fontes têm nessa audiência percebida, o aumento da diversidade na redação pode ser a maneira mais eficaz de refletir os leitores com maior precisão.

Seguindo o sumário do relatório, vou destrinchar um pouco mais 4 tópicos, traduzindo alguns trechos.

1. A audiência imaginada

Conhecer a audiência é um desafio considerável. Não apenas porque jornalistas e leitores estão separados por espaço e tempo, mas porque os públicos potenciais são grandes e diversos. Neste estudo, observamos que os jornalistas experientes utilizam a memória de longo prazo, o conhecimento em primeira mão e as convenções existentes para construir uma imagem mental de seus leitores, que usam em suas tomadas de decisão. Muitas vezes, esse processo acaba formando o “instinto” do indivíduo.

A audiência se tornou um “hot topic” na era digital, mas seu significado varia. Para publishers, representa valor potencial; para anunciantes, um grupo-alvo específico e receptivo a determinados argumentos; para os especialistas digitais, é um caminho para crescimento, a base do que se chama de “desenvolvimento de público”. Para os jornalistas, para quem audiência é principalmente sinônimo de leitores, permanece, em muitos aspectos, um conceito incompreensível.

2. Audiência em transformação na era digital

As pressões comerciais da era digital fizeram com que as organizações de notícias se concentrassem em suas audiências como um caminho para a sobrevivência financeira. Ao mesmo tempo, as plataformas digitais oferecem uma riqueza de dados sobre os leitores e seu comportamento; insights que os publishers esperam transformar em ouro.

Algumas outras mudanças fundamentais afetaram a forma como os veículos pensam seus leitores. As notícias não precisam mais ser compradas e consumidas como um pacote; em vez disso, são consumidas à la carte. Como resultado, as organizações agora devem considerar um público distinto para tudo o que produzem, algo que desafia a própria ideia de uma audiência institucional única e claramente definida.

3. Estudo de caso

Por meio do recorte da cobertura de Educação, James Robinson entrevistou repórteres e editores de oito veículos, perguntando a cada um deles quem eles viam como audiência, o que sabiam sobre esses leitores e como eles sabiam disso. As conclusões:

Ao contrário da nossa hipótese, parece não haver maior motivação para conhecer o público mais a fundo. A audiência institucional ainda prevalece: enquanto os jornalistas costumam enunciar tipos específicos de leitores que têm em mente (professores, parentes, etc), eles são de importância secundária. Os jornalistas com quem conversamos geralmente hesitavam em escrever para “nichos” (a menos que fosse um nicho que seu empregador valorizasse), preferindo que seu trabalho fosse acessível a um público mais geral.

Métricas não parecem influenciar as percepções da audiência. As ferramentas de análises (analytics) disponíveis não forneceram insights memoráveis ​​sobre públicos-alvo específicos: mesmo em startups digitais, os jornalistas não têm como saber quantos leitores potenciais existem em cada um desses segmentos ou quantos estão lendo suas histórias.

A proximidade física continua sendo a fonte mais atraente e ressonante do conhecimento do público. Muitos daqueles com quem conversamos descreviam eloquentemente os leitores reais com quem haviam conversado. Talvez uma das ironias da era digital seja a de que as percepções mais claras do leitor ainda são baseadas no contato pessoal real, uma conexão humana que a comunicação virtual – seja através de números, gráficos ou mesmo e-mails – se esforça para reproduzir.

4. Imaginação informada

Quais são alguns passos que as redações podem dar para melhorar a precisão do público imaginado pelos jornalistas?

Primeiro, por que não criar segmentos de usuários para editorias específicas? Esses esforços ajudariam os jornalistas a entenderem a escala do público-alvo – fornecendo uma base para medir o sucesso em termos de crescimento, em vez de apenas pontuar o sucesso de determinada matéria.

Melhor ainda, as redações poderiam encontrar maneiras de mesclar essas métricas quantitativas com insights qualitativos, fornecendo feedbacks confiáveis de leitores reais.

Uma reconsideração de papeis também é necessária. Repórteres às vezes acham que conhecer a audiência não é seu trabalho. Mas, como vimos, eles têm uma autonomia significativa em relação a muitas decisões jornalísticas. Por que não capacitá-los para que eles considerem o conhecimento da audiência em suas escolhas, ao invés de terem suposições baseadas nas convenções do passado?

Por fim, é fundamental incentivar a diversidade de redações para ampliar o círculo de vozes confiáveis ​​e incluir pessoas que estão fora dos grupos demográficos mais comuns do setor.

Há bons exemplos, mas eles ajudam na percepção sobre os leitores?

Emily Bell, diretora do Tow Center, mencionou a pesquisa de Robinson neste artigo publicado no The Guardian. Primeiro, ela dá dois exemplos de organizações que estão inovando no relacionamento com a audiência: a Tortoise, startup de ‘slow news’ que vai expandir sua rede de membros com organizações de diferentes perfis (escolas, centros comunitários), para engajar novas audiências e descobrir perspectivas “fora da bolha”; e a Solutions Journalism Network, que há muitos anos tem experimentado em nível local o envolvimento direto das comunidades para falar sobre questões que as afetam, em vez de apenas destacar problemas.

  • Na NFJ #229 falamos sobre a Tortoise e seu slow journalism.
  • O jornalismo construtivo (ou de soluções) foi tema nas NFJ #186 e #192.  

Vou contribuir com a lista da Emily Bell (embora ela não tenha ideia disso, rs). 

A recém-criada The City, organização de notícias local (Nova York) e sem fins lucrativos, anunciou o The Open Newsroom, projeto de um ano em parceria com a biblioteca pública do Brooklyn para entender como se dá o caminho da informação até uma comunidade – e para ela. O diretor de Engajamento Terry Parris Jr (que desempenhava a mesma função na ProPublica) diz que quer levar a redação para fora da redação. “Não queremos apenas construir uma comunidade, mas participar dela; não queremos dizer às pessoas como usar as notícias, mas perguntar como elas são usadas (e se são)”.

Outro exemplo, aparentemente mais prosaico, é o perfil do Washington Post no TikTok, rede social inundada de adolescentes e jovens (este texto do Nieman Lab informa que a plataforma chinesa tem meio bilhão de usuários ativos, com média de idade entre 16 e 24 anos). “We are a newspaper” (nós somos um jornal) é o nome da conta do Post, que já dá uma ideia do tom dos vídeos estrelados por Dave Jorgenson. Há brincadeiras constantes que evidenciam o conflito de gerações. É como se o jornal admitisse que não sabe como falar com esse público, e tentasse rir de si mesmo para cativar a audiência. Com humor e vídeos virais, o Post está tentando sair da bolha, porque sabe que seu futuro depende da formação de novos públicos. 

O vídeo abaixo mostra a estratégia do jornal no TikTok. Não sei vocês, mas já gastei algumas horas da minha vida só assistindo a esses vídeos e dando gargalhadas.

E por fim, um caso brasileiro. Vocês lembram da entrevista que fizemos com a Paula Miraglia, CEO e cofundadora do Nexo Jornal, né? Na ocasião, ela comentou brevemente sobre um projeto voltado para cursinhos populares, que ainda seria lançado. Pois bem, trata-se de um programa de patrocínio de assinaturas do Nexo para cursinhos populares (alunos e professores). Funciona assim: os cursinhos inscrevem suas turmas no programa, os leitores decidem quantas assinaturas gostariam de financiar e o Nexo dobra a contribuição. Como o modelo do jornal é baseado no paywall, a primeira grande barreira para que seu conteúdo fure a bolha é justamente a financeira. Programas como esse ajudam a ampliar o acesso, já que uma das metas do Nexo é ser conhecido por mais gente. Faz todo sentido, certo?

Voltando ao artigo, Emily Bell destaca que “as iniciativas de engajamento oferecem pelo menos um contato real com outros seres humanos”. Mas ela faz uma ressalva, citando o estudo de James Robinson: “não está claro se essas iniciativas têm uma influência duradoura sobre as percepções da audiência… nem é certo que elas sempre introduzem jornalistas a novos tipos de leitores”.

A relação com a audiência em três depoimentos

Quem acompanha o Farol há mais tempo sabe que o assunto métricas e relação com a audiência foi tema da minha tese de doutorado. Em 2017, fui a três redações pra tentar entender como a imensa quantidade de dados sobre a audiência estava agindo na cultura profissional dos jornalistas. 

Selecionei alguns depoimentos que dão uma noção de que essa treta não é simples. Tá todo mundo tentando encontrar um equilíbrio entre o julgamento editorial do jornalista e a sabedoria que vem da audiência. Vejam o que os profissionais me disseram:

“Nós confiamos na intuição dos editores e em seus julgamentos, mas penso que hoje esperamos que eles justifiquem melhor suas decisões.”

Jonathan Casson, diretor de Produção do The Guardian

Filosoficamente posso te dizer que o que queremos é encontrar as necessidades da audiência para informá-la, entretê-la e dar a ela as notícias nas quais se interessam de forma acessível. Isso para tentar entender a jornada do usuário e utilizar isso como base para criar hipóteses sobre o que são números de engajamento. Penso que o que não temos ainda, em termos de engajamento, é como traduzir todas essas coisas em o que a pessoa que está lendo aquela matéria ou assistindo aquele vídeo está sentindo“.

Sarah Shenker, editora de Engajamento da Audiência da BBC

“A gente descobriu recentemente que qualquer coisa que fazemos sobre CNH, carteira de motorista, as pessoas ficam enlouquecidas. Então, sempre que aparece algo sobre isso a gente trata bem. Outro exemplo: falar de trem em São Paulo. Paulista adora qualquer coisa de trem, acho que é nostálgico. Outra coisa que a gente sacou que as pessoas gostam é a informação bem mastigada. As pessoas gostam desse tipo de serviço, tem muito compartilhamento, porque a dúvida dela vai estar lá. É outra coisa que a gente aprendeu com a audiência”.

Eduardo Scolese, editor de Cidades da Folha de S. Paulo

O professor C.W. Anderson, em entrevista ao Farol, resumiu essa tensão: “Jornalistas devem saber o que o público pensa, mas não devem se tornar escravos disso e têm que continuar pensando sobre o que a audiência precisa”.

Algumas saídas

Diante de toda essa discussão, surgem algumas possíveis soluções que resumo em 5 tópicos:

  • Diversidade (na redação, nas pautas, nas estratégias) para sair da bolha;
  • Mesclar análises quantitativas com um entendimento qualitativo da audiência;
  • Jornalismo construtivo (ou de soluções) para ir além de só apresentar o problema;
  • Criatividade para formação de novos públicos;
  • Levar a redação para fora da redação, aproximando-se da comunidade;
  • Buscar equilíbrio entre o conhecimento profissional e a sabedoria popular.

Para saber mais

Uma última dica para quem se interessa por jornalismo e audiência: sigam essas pessoas. São profissionais e pesquisadores que manjam muito do assunto.

Amanda Zamora, editora de Engajamento do Texas Tribune

Caitlin Petre, professora e autora desta ótima pesquisa sobre ‘fábricas de tráfego’

Chris Moran, editor de Projetos Estratégicos do The Guardian

CW Anderson, professor e pioneiro no estudo da relação entre métricas e cultura profissional

Federica Cherubini, gerente de Engajamento da Hearken e autora desse outro excelente estudo sobre métricas editoriais

Pedro Burgos, professor e fundador do Impacto.jor

Terry Parris Jr., diretor de Engajamento do The City