Nesta análise, discutimos o poder deste tipo de narrativa nos ambientes digitais, damos exemplos bem sucedidos e apresentamos os 5 estágios de uma história longform.
Tem sido chamado de longform o formato que diz respeito a um nível mais aprofundado de relato, que vai além do padrão cotidiano da produção jornalística. Em artigo escrito em 2013 na American Journalism Review, Mary Fischer destaca que as narrativas atraentes são a marca do longform, já que o formato significa mais do que um monte de palavras.
Na NFJ #241 indicamos a reportagem multimídia do New York Times sobre o incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris, ocorrido há três meses. O professor Charlie Beckett se impressionou com a narrativa, infográficos e imagens. “É também uma escrita convincente que revela o drama e os erros deste evento catastrófico numa sequência clara e detalhada”, afirmou.
E não foi só ele. A reportagem tem sido bastante elogiada por dois indicadores de qualidade: a investigação e a narrativa multimídia. Sobre o primeiro, resumidamente a apuração do jornal dá conta de que a Notre-Dame chegou muito mais perto de desmoronar do que se pensava (a Folha traduziu o texto para o português). E sobre os recursos multimídia, os infográficos, imagens, vídeos e ilustrações proporcionam ao leitor um mergulho visual que dá a exata dimensão do quão iminente estava a tragédia.
No especial do Farol sobre o jornalismo no Brasil em 2017, a professora da UFSC Raquel Longhi destacou que a qualidade é protagonista no longform. A série Tudo Sobre, da Folha de S. Paulo, e o UOL Tab, foram citados por ela como exemplos bem sucedidos do formato em nosso país. Em termos históricos, ela afirma que
“A partir de meados da década de 2010, pelo menos, o jornalismo brasileiro nos meios digitais vem apostando em conteúdos que prezam por uma apuração mais aprofundada e uma edição mais meticulosa. Em termos de linguagem, explora os recursos multimídia nos meios digitais, como vídeo, fotografia, infográficos e som, e um texto caracterizado por uma dimensão mais longa, cuja extensão ultrapassa as quatro mil palavras, pelo menos. Tudo isso, dentre outros aspectos, define o que tem sido chamado de jornalismo longform”.
Trata-se, portanto, de uma das tendências em termos de produção jornalística na internet. Na NFJ #157 elencamos 12 formatos de notícias para os meios digitais, a partir deste artigo de Tristan Ferne, produtor executivo de Pesquisa e Desenvolvimento da BBC. Segundo ele, o longform scrollytelling é um deles. São reportagens longas, lidas conforme se rola a barra de scroll, evoluída da pioneira Snowfall, também do New York Times.
Os 5 estágios de uma história longform
Esta semana, o professor Paul Bradshaw publicou um artigo muito didático em seu blog a partir de uma comparação com a obra de Christopher Booker ‘The Seven Basic Plots‘. Ele aplica para o jornalismo os cinco estágios de uma história que Booker elenca em seu livro, destacando que os conceitos são mais adequados ao jornalismo longform. Vejam:
1. Antecipação: é apresentado um estudo de caso que incorpora o problema ou, em alguns casos, podemos levantar uma questão (“Como isso aconteceu?”) ou destacar um enigma. Nas narrativas jornalísticas, o “problema” é, com frequência, duplo: as investigações geralmente envolvem um problema com a sociedade, mas, para orientar a narrativa, elas também podem ter um protagonista que tente resolver esse problema.
2. Sonho: histórico e contexto para o problema são apresentados. Esta parte é um “sonho” porque tende a ser relativamente suave e satisfatória (estamos obtendo respostas para os problemas definidos no início).
3. Frustração: este é o “mas” que segue o pano de fundo. É a diferença entre o que deveria ser e o que é. Pode muito bem ser maior e mais complexo do que pensávamos, ou as soluções iniciais estão levando a novos problemas, ou pode ser que certas coisas devam acontecer, mas não estão sendo assim.
4. Pesadelo: no jornalismo, as “batalhas finais” são relativamente raras, a menos que a história já tenha chegado ao fim (por exemplo, um caso judicial). Um termo melhor para a escrita jornalística, então, é o clímax, quando a história é trazida à tona.
5. Fuga Milagrosa / Redenção: No jornalismo, o termo melhor seria a resolução. Normalmente, esse é um final que olha para o que acontece a seguir, seja para a questão como um todo (há um inquérito que deve ocorrer, a polícia forneceu um depoimento em resposta à investigação) ou para uma das pessoas envolvidas.
Bradshaw faz um adendo à aplicação dessa abordagem ao jornalismo de soluções ou construtivo (falamos sobre ele nas NFJ #186 e #192): “você pode simplesmente introduzir a ‘solução’ no estágio do sonho: delinear o plano de fundo, as tentativas de resolver o problema. O ‘pesadelo’ então se torna um obstáculo para essa solução, que pode incluir problemas que precisam ser resolvidos primeiro. O clímax pode envolver uma entrevista com os responsáveis por abordar esses problemas, bem como aqueles que apresentam obstáculos”.
Aplicando os 5 estágios em uma reportagem
“8000 Holes: How the 2012 Olympic Torch Relay Lost its Way” (“Como o revezamento da tocha olímpica de 2012 perdeu o rumo”) é um livro escrito por Paul Bradshaw e Carol Miers, em que investigam como dezenas de pessoas inspiradores perderam a chance de carregar a tocha olímpica por acordos comerciais dos organizadores. Ele lembra que esta foi a história mais longa que já escreveu e conta como aplicou os 5 estágios:
– Antecipação: começamos com a pergunta de Jack Binstead e sua enfermeira (“problema”) sobre como indicá-lo para o revezamento da tocha olímpica.
– Sonho: continuamos explicando como o revezamento da tocha funcionou, as promessas feitas, etc.
– Frustração: mas há um problema – encontramos evidências de lugares de revezamento da tocha sendo dados a executivos, deixando de cumprir as promessas feitas pela organização.
– Pesadelo: o clímax nos leva de volta a Jack, e a um depoimento que poderia de fato ser classificado como o pesadelo de sua família, quando ele lista todos os executivos que carregaram a tocha no dia em que ele a carregaria.
– Resolução: terminamos com um resumo que contrasta as promessas contra a realidade – uma resolução factual e insatisfatória. Não é um final feliz, mas chegamos ao nosso destino.
Mais do que um recurso narrativo, os cinco estágios propostos por Bradshaw no jornalismo podem ser eficazes para manter o leitor envolvido com a história, em um ambiente altamente propenso à evasão – a internet.
Pesquisas sobre jornalismo longform no Brasil
Se na prática o longform pode ser visto em um número crescente de publicações, na teoria o formato também tem sido objeto de estudos. Elencamos abaixo algumas pesquisas brasileiras sobre o tema:
– A narrativa longform em reportagens hipermídia (2017) – O artigo de Alciane Bacin, publicado na revista Estudos em Jornalismo e Mídia, busca compreender o papel da narrativa longform na reportagem hipermídia, destacando suas características. Analisa reportagens do New York Times/EUA, Público/Portugal e Folha de SP/Brasil. Entre as considerações, Bacin destaca que a narrativa longform tem garantido o aproveitamento de potencialidades do ambiente digital, tornando-se um produto com características próprias, que abarca o conceito de hipermídia.
– O lugar do longform no jornalismo online: qualidade versus quantidade e algumas considerações sobre o consumo (2015) – Publicado na revista Brazilian Journalism Research, o artigo de Raquel Longhi e Kérley Winques discute o jornalismo longform, verificando onde, de que forma se dá e como está sendo lido. Por meio de entrevistas com editores do jornal Folha de S.Paulo e do portal UOL, o artigo define o “estado da arte” deste fenômeno, problematizando seu consumo.
– De Hiroshima a Snow Fall: as permanências, mutações e possibilidades do jornalismo narrativo de forma longa na web (2014) – O trabalho de conclusão de curso de Isabela Dias na UFRJ busca sustentar a hipótese da retomada de um modelo de jornalismo com requintes literários. À semelhança daquele praticado pelo movimento do new journalism, uma tendência atual no jornalismo se inclinaria na direção da expansão de suas potencialidades narrativas através das ferramentas multimídia disponíveis no meio digital.
Repositório de jornalismo longform e ferramentas
Para quem se interessa pelo assunto, este repositório de grandes reportagens multimídia pode ser bastante útil. Kérley Winques destaca as produções de veículos brasileiros e estrangeiros, e ainda indica ferramentas gratuitas para produção de narrativas e formato longform.