Para sobreviver à próxima década, Ken Doctor afirma que veículos terão que aumentar capacidade de produção de conteúdo exclusivo, ser orientados para o crescimento, reter talentos, defender a privacidade dos cidadãos e criar nos leitores a vontade de pagar.
Ken Doctor escreve há 10 anos para o Nieman Lab. Neste texto, ele recorre a essa experiência, analisa o passado e o futuro do jornalismo e crava: 2020 está na interseção entre otimismo e realismo. Entre as boas notícias, ele destaca que narrativas interativas e multimídia, conexão leitor-jornalista sem precedentes, conhecimento infinitamente pesquisável e receita múltipla de leitores estão iluminando os negócios das empresas jornalísticas. Por outro lado, se estamos no melhor dos tempos para jornais como o The New York Times, o período é ruim para grande parte dos veículos locais.
É assim, com um olho na última década e outro na próxima, que Ken Doctor apresenta 20 entendimentos de onde estamos e o que construiremos nos próximos anos. Embora sua análise esteja voltada para o jornalismo norte-americano, Doctor faz leituras gerais bem interessantes, que podem também se aplicar ao cenário brasileiro. E foi esse meu critério para selecionar 5 dessas 20 epifanias, como ele mesmo chama.
1. A primeira métrica que importa é a capacidade de conteúdo
O raciocínio de Doctor é preciso: embora quase tudo possa ser contado no mundo digital, há tantos números somados e tão pouco resultado para tantos. Assim, o diferencial de um veículo jornalístico deve estar na capacidade de produção de conteúdo, que impulsiona sua proposta de valor.
“Em vez de reduzir o número de funcionários – e, assim, girar a espiral descendente mais rapidamente – o aumento do número de profissionais pode levar a uma palavra mágica: crescimento”.
Para ele, publishers que oferecerem um volume suficiente de conteúdo exclusivo e diferenciado podem vencer. E isso já está acontecendo em modelos tão diversos quanto The Wall Street Journal, The Washington Post, The New York Times, The Guardian, The Athletic, The Information, Star Tribune e The Boston Globe.
Além de significar um melhor atendimento às necessidades informativas do público, ter jornalistas mais qualificados é, segundo ele, fundamentalmente uma lógica de negócios.
2. A indústria de notícias só irá se recuperar quando buscar crescimento
Doctor lembra que, em meio aos desertos de notícias da América (aqui no Brasil temos os nossos também, certo?), não se ouve falar de crescimento. A conversa entre proprietários e executivos gira sempre em torno de “onde cortamos? Como aguentaremos?”.
Mas ele enfatiza: cortar não está funcionando. A guerra de anúncios digitais foi perdida para Google e Facebook. Serviços de marketing, um fluxo de receita perseguido com muito otimismo há alguns anos, provaram ser um negócio difícil e de baixa margem. As vendas de assinaturas digitais estão paralisadas em todo o país, principalmente por causa de todo o impacto desses cortes.
Diante disso, Doctor afirma que somente uma orientação para o crescimento – com estratégias que captam o futuro de maneira otimista e são financiadas adequadamente – pode acordar os veículos desse pesadelo. “Troque estratégias de substituição por estratégias de crescimento e essas empresas vão parecer diferentes”, diz.
E há modelos de crescimento para olhar: hoje, o New York Times paga 1.700 jornalistas. Isso é quase o dobro de uma década atrás. O Washington Post paga 850, contra 580 quando Jeff Bezos o comprou em 2013.
E de novo Doctor destaca que o resultado disso é um conteúdo mais exclusivo e de alta qualidade, que levou os dois veículos a novos patamares de sucesso em assinaturas. Ou seja, os leitores recompensaram o investimento e essas recompensas, por sua vez, permitiram mais investimentos.
Essa curva de crescimento exige visão e paciência a longo prazo. E, é claro, capital. Mas Doctor lembra que o que também exige é uma crença na missão dos negócios, uma crença aparentemente irracional de que o futuro dos negócios de notícias pode e deve ser robusto.
3. A fuga de cérebros é real
Qual é o maior problema na indústria de notícias? O colapso da receita de anúncios? Facebook? Desinformação? Envelhecimento de assinantes do impresso? Surpreendentemente, Doctor afirma que, ao longo do ano passado, vários editores e CEOs confidenciaram o que mais os incomoda: talento.
De acordo com relato de muitas organizações de notícias, atrair e reter os talentos de que precisam, especialmente nas áreas de negócios, produtos e tecnologia, determinarão sua própria sobrevivência.
Mas quem quer trabalhar em um setor em crise? Para Doctor, os profissionais que podem fazer a diferença no futuro das notícias querem: remuneração justa – e as empresas de notícias locais costumam pagar salários abaixo do mercado; e um futuro positivo – um no qual seus chefes acreditem todos os dias. “E isso é mais raro do que dinheiro neste negócio”, afirma.
Nenhuma indústria tem futuro sem um fluxo de talentos jovens e diversos. Doctor cita o relatório de tendências do Instituto Reuters, recém-lançado. “A falta de diversidade também pode ser um fator para trazer novos talentos para o setor. Os publishers têm uma confiança muito baixa de que podem atrair e reter talentos em tecnologia (24%), ciência de dados (24%), e gerenciamento de produtos (39%). Havia mais confiança nas áreas editoriais (76%)”.
4. A imprensa livre precisa defender melhor os cidadãos livres no século XXI
Cidadãos livres – aqueles capazes de falar, escrever, reunir, votar e reter alguma dignidade de privacidade – constituem uma minoria desconfortável da população mundial. Doctor lembra da recente investigação do New York Times sobre reconhecimento facial, que pintou um retrato distópico perturbador; e os relatos sobre o “estado de vigilância” da China, um sistema ameaçador que visa permitir o rastreamento ao longo da vida e recompensar o comportamento do cidadão aprovado pelo Estado.
Para ele, estamos mudando de uma década de cookies enlouquecidos para o que até recentemente parecia ser ficção orwelliana.
“Combine a tecnologia com a crescente onda de autoritarismo que aflige o mundo. Da Rússia à Hungria, à Turquia, ao Brasil e às Filipinas, sim, nossa atual Casa Branca, os anos 2010 produziram homens que pensávamos ter sido relegados aos livros de história”.
E quem melhor representa as pessoas livres na cobertura de possíveis déspotas e nas ameaças da tecnologia a vários séculos de direitos conquistados com tanto esforço? Uma imprensa livre e forte, aponta Doctor.
Para isso, uma das principais funções do jornalismo é lembrar, trazer à memória, para conectar ontem a hoje e amanhã. Mas não é algo fácil. Doctor afirma que houve uma reação contra as plataformas após os escândalos do Facebook nas eleições norte-americanas de 2016. “Mas aqui estamos novamente, como Emily Bell aponta, entrando em outra eleição com os mesmos problemas – e enormes questões que vão muito além do gigante social”, diz.
E continua:
“Quem melhor se posiciona do que aqueles que há muito defendem os povos livres e o pensamento livre? Quem melhor para fazer isso – e talvez seja recompensado por isso no suporte ao leitor – do que a mídia orientada para sua missão? O renascimento dos negócios da imprensa é parte integrante de sua defesa das pessoas a quem serve”.
5. Assinaturas digitais podem crescer
Quando se trata de assinaturas, é impossível não citar a Netflix. Segundo Ken Doctor, a empresa criou uma nova categoria de demanda de clientes: a vontade de pagar. Atualmente, são 167,1 milhões de assinantes, sendo 8,8 milhões adicionados no quarto trimestre de 2019.
O que isso ensina para o futuro da indústria de notícias? Segundo Doctor, que não há limite natural para as assinaturas digitais, embora os repórteres de mídia gostem de lhe fazer essa pergunta.
“Crie uma proposta de valor que funcione e que os consumidores paguem. Obviamente, a escala nacional e global – o que a internet fornece – é extremamente útil. É a proposta do produto que impulsiona o pagamento”.
E ele instiga: considere todas as histórias de sucesso de assinaturas digitais em notícias: The New York Times, Financial Times, The Wall Street Journal, The Washington Post, The New Yorker, The Athletic, The Boston Globe, Star Tribune, entre outros. E se isso for apenas o começo? Poderiam produtos melhores – com conteúdo cada vez mais útil, com preços e dados utilizados de maneira inteligente – reproduzir parte do sucesso em escala do streaming?
Em uma palavra, Doctor diz que sim. E essa é a melhor esperança para a próxima década, segundo ele.