Na edição conjunta de 9 e 10 de maio, o jornal gaúcho Zero Hora exibiu, em sua capa, dois trabalhadores uniformizados em um cenário que parecia ser um chão de fábrica. Ainda que usassem equipamentos de proteção no rosto, era possível observar seus traços orientais. Além de capacete e óculos, a dupla usava máscaras estampadas com a bandeira do Rio Grande do Sul e ilustrava a reportagem sobre o distanciamento controlado que entraria em vigor no Estado no dia 11.
Nem os trabalhadores nem as máscaras existem. Os primeiros são modelos contratados para uma série de fotos de um banco de imagens internacional. Já as máscaras estão presentes na foto original, mas sem o símbolo rio-grandense.
Nada disso foi escondido do leitor. Está lá nas miúdas letras do crédito: “Arte de Jonatan Sarmento sobre foto de Narong, Stock.adobe.com.” Não está escondido, mas está claro? Quem entende que esse crédito significa que houve uma alteração na foto original, comprada de um banco de imagens? O leitor sabe o que é Stock.adobe.com? Ainda que possa supor o que aconteceu ali, consegue identificar onde está a adulteração?
Inicialmente, a capa provocou comentários nas redes sociais pelo seu simbolismo – foi tachada de ufanista. Em seguida, passou a chamar ainda mais atenção de professores e jornalistas que acompanham o diário por causa do crédito.
Trabalhei por 7 anos na Zero Hora, até 2011. Voltei no ano passado para uma temporada de oito meses. Conheço bem o padrão de qualidade exigido lá dentro, de apuração, checagem, texto, imagem. Fiquei intrigada: por que um jornal como a ZH optou por uma imagem de banco (a mesma usada por esse site canadense)? E qual o objetivo de aplicar essa bandeira?
Mandei um email para o gerente-executivo de jornalismo dos jornais do Grupo RBS, Nilson Vargas, ex-chefe querido, questionando as escolhas. Ele justificou que a intenção era “indicar que a reportagem trataria da economia gaúcha” e afirmou que a redação quer “proteger ao máximo seus profissionais” neste momento de pandemia.
Apesar de ter sido informado no crédito que se trata de arte sobre foto de banco de imagens, conforme orienta o padrão da redação, nem todo mundo presta atenção a esse detalhe. Teve professor de jornalismo surpreendido com a informação mesmo depois de ter analisado a tal da capa. Muitos leitores foram induzidos a pensar que aquela fotografia havia sido clicada em uma fábrica gaúcha, o que não é verdade. Um elemento foi adicionado à imagem sem que isso ficasse claro. É bem diferente de retocar o azul do céu ou criar uma caricatura evidenciada pelo seu traço.
Perguntado se não via uma questão ética a se discutir, como por exemplo, até onde se pode ir na manipulação de imagens, Nilson limitou-se a afirmar que o padrão usado “há décadas” por ZH é transparente em relação ao processo que resultou na imagem. “É muito comum para soluções de capas, em jornais e revistas, em todo o mundo”, respondeu. É verdade que é comum, mas a repercussão negativa da capa me faz pensar que ZH e outros tantos veículos, às vezes, perdem a oportunidade de contribuir para a tão falada educação midiática ao não atualizarem seu critérios de transparência. Se não está funcionando para o público, talvez não esteja assim tão transparente.
A mesma edição traz um bom exemplo de como educar o público para o consumo de informação quando apresenta a reportagem como uma produção de jornalismo de soluções – ainda que com uma definição, a meu ver, simplificada. A prática, que não é nova, vai além do debate de ideias sobre um problema, ela é uma narrativa que já aponta respostas colocadas em prática, seus limites e suas evidências, ainda que preliminares.
Voltemos à foto.
Além do que já escrevi até aqui, no momento em que o jornal escolhe uma foto de um banco internacional para tratar do tema mais relevante do noticiário local, há outras implicações. Em conversa particular, um ex-editor de ZH observou: ao ilustrar a pauta com modelos que posam para a câmera como se fossem trabalhadores, o jornal se desobriga a falar com pessoas reais afetadas por essa retomada.
Existe, claro, uma limitação de mobilidade da equipe devido aos riscos de contaminação da Covid-19, como Nilson frisou em suas respostas. Contudo, ao dar destaque a essas figuras na sua capa, o jornal coloca os trabalhadores no centro da questão mas seus leitores ficam sem saber o que eles pensam sobre as novas medidas de restrição anunciadas, como serão afetados (serão afetados?) – uma confusão que só existe porque optou-se por uma imagem que não tem correspondência com a realidade. Operários gaúchos posariam com essa “atitude confiante”, conforme descreve a legenda da foto original?
Sobre a capa ter sido chamada de ufanista e bairrista, Nilson afirmou que o jornal já “venceu” essa discussão. “Olhares fragmentados para uma manchete, uma capa, uma imagem são parciais. Quem acompanha o conjunto da nossa cobertura sabe que não somos ufanistas.” Concordo que a cobertura não é ufanista, é uma das mais completas que temos aqui no RS, aliás. Mas a imagem, sob o título de O caminho da retomada, sem uma menção sequer aos quase 10 mil mortos por Covid-19 no Brasil até aquele momento, me fez ressuscitar também essa reflexão.