Apresentamos dois recentes estudos sobre Inteligência Artificial e jornalismo que mostram como a organizações de notícia entendem a IA, como ela está sendo usada em suas redações e as opiniões sobre o potencial e os riscos para a indústria de notícias.
Esta semana saíram dois relatórios importantes sobre Inteligência Artificial (IA) e jornalismo: “Actually, it’s about Ethics, AI, and Journalism: Reporting on and with Computation and Data” (Na verdade, trata-se de ética, IA e jornalismo: reportando sobre e com computação e dados), do Tow Center da Universidade de Columbia; e “New powers, new responsibilities: a global survey of journalism and artificial intelligence” (Novos poderes, novas responsabilidades: uma pesquisa global sobre jornalismo e inteligência artificial), da London School of Economics and Political Science, em parceria com o Google News Initiative.
Os dois estudos partem do mesmo ponto: a inteligência artificial já faz parte do jornalismo e os repórteres estão trabalhando com técnicas cada vez mais avançadas. A distribuição desigual dessa prática e as questões éticas são destacadas por ambos estudos como grandes desafios para as organizações jornalísticas.
Vou começar então pela pesquisa do Tow Center, que traz uma perspectiva histórica muito interessante: junto com exemplos atuais de utilização de IA pelas redações, os autores Bernat Ivancsics e Mark Hansen relembram a parceria entre a IBM e o The New York Times na Feira Mundial de 1964, por meio de comentários de Joseph Weizenbaum, uma figura famosa na pesquisa de IA nos anos 1960. A parceria resultou em um dos mais ambiciosos sistemas de entrega de informações da época.
A recuperação histórica inclui Joseph Pulitzer e a defesa da disciplina de estatística nos cursos de jornalismo em 1904; Walter Lippmann e seu sonho, em 1920, com um mundo em que as notícias fossem menos politizadas e com mais fatos baseadas em dados estruturados; e Phillip Meyer com seu jornalismo de precisão, introduzindo os princípios básicos da reportagem assistida por computador, em 1967. Tudo isso para dizer que não se trata de um fenômeno novo e que, por meio de dados, jornalistas podem investigar situações que de outra forma permaneceriam invisíveis.
Os primórdios da Inteligência Artificial
Na Feira Mundial de 1964, a IBM apresentou uma máquina treinada para reconhecer datas manuscritas. Em parceria com o NY Times, a empresa extraiu de cada edição (desde 1851) a notícia mais importante, a elencou em manchetes, e assim alimentou a máquina. Desta forma, era possível escrever qualquer data em um cartão, que era escaneado e, segundos depois, a máquina mostrava a manchete daquele dia.
Demais, né? E não para por aí.
De 1964 a 1966, Joseph Wiezenbaum desenvolveu o programa ELIZA, um experimento de “conversação” homem-computador. “Em resumo, um chatbot”, dizem os autores do estudo. Hoje, o programa foi republicado em linguagens modernas como Python.
“No essencial, a ELIZA pesquisa as informações de uma pessoa na conversa em busca de determinadas palavras-chave. Se uma palavra-chave for encontrada, uma regra será aplicada para transformar sua entrada e criar a resposta da ELIZA. O programa de Wiezenbaum é um exemplo de um tipo de inteligência artificial que costuma ser chamada de “programação heurística” – depende de “’dicas’, ‘sugestões’ ou ‘regras básicas.’”
Em 1969, outra grande invenção: o The Information Bank, que indexava todos os conteúdos do jornal. Mas foi um percurso turbulento. Repórteres reclamavam que, embora extensa, a indexação não incluía jargões, gírias, acrônimos ou termos técnicos recém-criados. E havia uma crítica mais grave: como não era possível relatar todos os acontecimentos nos arquivos, o banco era um produto de escolhas editoriais humanas do NY Times. Levando em consideração que o arquivo se tornaria parte importante das pesquisas feitas em bibliotecas e universidades, “temia-se que o Times poderia facilmente se tornar um árbitro da história ainda mais poderoso do que é agora. Para muitos pesquisadores, o que não está no banco simplesmente não aconteceu”, diz um trecho de um artigo publicado na New York Magazine em 1972.
Joseph Weizenbaum chegou a declarar que o The Information Bank estava, de fato, destruindo a história.
“O New York Times começou a construir um “banco de dados” de acontecimentos organizados. Obviamente, apenas os dados que são facilmente entregáveis como subprodutos de máquinas de escrever são admissíveis no sistema. À medida que o número de assinantes do sistema aumenta, e à medida que eles aprendem cada vez mais a contar com “todas as notícias que uma vez eram adequadas para imprimir”, como o Times identifica orgulhosamente sua política editorial, quanto tempo levará para que o que conta como fato seja determinado pelo sistema, antes que todo outro conhecimento, toda memória, seja simplesmente declarado ilegítimo?”
Após todos esses entraves, o The Information Bank foi descontinuado. Os autores afirmam que o Times, inclusive, o apagou de sua história. “Um livro recente publicado pelo Times sobre sua história não incluía uma única palavra sobre o The Information Bank ou seus quatorze anos de atividade pública”.
Inteligência Artificial e Jornalismo hoje
Os pesquisadores de Columbia lembram que, hoje, jornalistas passam inúmeras horas montando conjuntos de dados: copiando textos e tabelas de sites, digitalizando documentos públicos ou mesclando tabelas de dados existentes que possuem classificadores comuns. Algumas das melhores reportagens começam preenchendo lacunas com conjuntos de dados. “Do número de pessoas mortas nos EUA pela polícia ao destino de pessoas retornadas aos seus países de origem depois de terem tido negados asilo nos EUA, os dados e a computação fornecem aos jornalistas ferramentas que revelam fatos sobre registros oficiais fracos ou inexistentes”.
No entanto, a sofisticação computacional é desigual entre as redações. Algumas empresas lutam para produzir uma análise simples de planilhas, enquanto as grandes organizações têm recursos de computação disponíveis em um laboratório interno. Isso faz com que veículos como o AI Studio do Quartz compartilhem seus recursos com outras organizações de notícias, fornecendo treinamento de aprendizado de máquina a repórteres.
Na conclusão do estudo, os autores chamam atenção para a necessidade de jornalistas desenvolverem suas habilidades técnicas para se tornarem criadores de ferramentas, e não só usuários delas. “É dessa maneira que controlamos, moldamos nosso relacionamento com a IA e talvez possamos criar uma forma técnica totalmente nova, repleta da ética e dos valores de nossa profissão”.
Novos poderes, novas responsabilidades
O relatório de Charles Beckett, da London School of Economics, baseia-se em uma pesquisa com 71 organizações de notícias de 32 países diferentes. Os 116 jornalistas (no Brasil, eles entrevistaram a Folha de S. Paulo) responderam a perguntas sobre seu entendimento de IA, como ela foi usada em suas redações e suas opiniões sobre o potencial e os riscos mais amplos para a indústria de notícias.
Abaixo, traduzi as principais descobertas da pesquisa:
1. Inteligência artificial (IA) como uma gama de tecnologias, incluindo aprendizado de máquina, automação e processamento de dado, já faz parte do jornalismo, mas está desigualmente distribuída.
2. Seu impacto no futuro é incerto, mas a IA tem potencial para ampla abrangência e profunda influência sobre como o jornalismo é produzido e consumido.
3. Mesmo as redações pesquisadas que estão mais à frente na adoção de IA as descreveram como adicional, suplementar e ainda não transformadora.
4. O poder e o potencial descritos neste relatório deixam claro que todas as as redações devem prestar atenção à IA.
5. A IA é definida pelas redações como humana ou tecnologicamente relacionada e por sua função.
6. É importante ter uma definição organizacional de IA para ajudar a moldar a estratégia e promover a compreensão e a comunicação na redação.
7. Pouco menos da metade dos entrevistados disseram usar IA para coletar notícias, dois terços disseram que a usaram para produção e pouco mais da metade disse que empregaram IA para distribuição.
8. Há uma aspiração geral de usar qualquer técnica eficiente para liberar recursos, melhorar o funcionamento da redação e aprimorar serviços.
9. Os três principais motivos para o uso da IA foram:
• Tornar o trabalho dos jornalistas mais eficiente (68% das respostas)
• Fornecer conteúdo mais relevante para os usuários (45%)
• Melhorar a eficiência dos negócios (18%).
10. Pouco mais de um terço dos entrevistados afirmaram ter uma participação ativa na estratégia de IA.
11. Havia quatro abordagens principais para criar uma estratégia de IA:
• Gerenciamento tradicional em departamentos existentes
• Equipes separadas trabalhando em projetos de IA
• Estruturas tecnológicas e editoriais integradas
• Equipes experimentais – separadas ou integradas.
12. As redações se dividem aproximadamente pela metade entre aquelas que estão prontas para IA e aquelas que estavam apenas começando ou ainda planejando usar IA.
13. Havia um medo significativo de sua redação ficar para trás. Esse era um problema específico em pequenas redações, aumentando a perspectiva de crescente desigualdade entre pequenas e grandes organizações.
14. Os cargos na redação tendem a mudar mais através do aumento das funções atuais e não pela substituição de empregos. Ou seja, haveria novas tarefas para as pessoas em funções existentes e novos fluxos de trabalho, mas poucas novas funções específicas de IA.
15. Os maiores desafios para a adoção da IA citados pelos entrevistados foram recursos financeiros (27%) e conhecimentos ou habilidades (24%). Mas tão significativa quanto qualquer uma delas foi a resistência cultural (24%), incluindo o medo de perder empregos, de mudar hábitos de trabalho, e uma hostilidade geral a novas tecnologias. Falta de conhecimento sobre IA (19%) em toda a organização de notícias, juntamente com a falta de uma visão estratégica gerencial (17%) também foram questões-chave. Eles também descreveram a IA como frequentemente cara para construir e gerenciar.
16. Em nossa pesquisa, fica claro que há falta de planejamento. As estratégias de IA sempre variam de acordo com a natureza da organização de notícias e com o estágio de adoção alcançado, mas esses são os elementos-chave a serem considerados:
• Avalie seu estágio e estado de prontidão para IA;
• Compreenda e categorize os tipos de tecnologias de IA que você está considerando;
• Decida como a IA pode se relacionar com sua marca e estratégia geral, os problemas que ela pode resolver ou as necessidades que pode atender;
• Avalie quais áreas da sua organização podem usar IA e por que;
• Identifique os principais obstáculos: recursos, habilidades, cultura, gerenciamento, etc. e planeje como abordá-los de maneira sistemática;
• Atribua funções e responsabilidades e crie uma comunicação para incluir todas as partes interessadas;
• Estabeleça sistemas de monitoramento e revisão de desempenho e prioridades;
• Crie relações externas com parceiros, clientes e recursos mais amplos de IA com a missão de investigar e incorporar inovação em IA.
17. A maioria dos entrevistados confia que, em geral, o impacto será benéfico se as organizações de notícias mantiverem sua ética e postura editorial.
18. As redações identificaram seis áreas principais em que a IA pode fazer diferença para a ética da organização e suas práticas e políticas editoriais:
• Economia: fazer cortes com as economias geradas pela IA pode diminuir padrões editoriais. Os reinvestimentos poderiam ser usados para melhorar a qualidade e a eficácia do jornalismo
• Viés algorítmico: o uso inadequado de dados pode levar a erros como imprecisão ou distorção e até discriminação contra certos grupos sociais ou pontos de vista;
• Desinformação / filtros-bolha: a IA pode ajudar a espalhar ‘notícias falsas’. O uso bruto da personalização pode piorar o viés de confirmação. Mas a IA bem gerenciada pode ajudar a combater a desinformação e melhorar a qualidade da informação pública.
• Aprimoramento das decisões editoriais e transparência: a IA pode ajudar a corrigir preconceitos antigos da redação e aumentar a diversidade de histórias e públicos. Pode ajudar a promover transparência em torno do uso da IA e do jornalismo em geral.
• Equilibrar inteligência humana e artificial: é vital que o jornalismo retenha valores humanos e até aumente o valor do julgamento humano e da criatividade.
• O papel das empresas de tecnologia: há preocupação sobre o poder das “Big Techs” como concorrentes e sobre seu controle de pesquisa e desenvolvimento de produtos. Elas são também vistas como fonte de inovação, ferramentas e sistemas.
19. Há três níveis de pensamentos sobre o futuro:
• Primeiro: melhorar o que está acontecendo agora com as equipes existentes de produto e editoriais;
• Segundo: inovação de médio prazo nos próximos 2-5 anos com aplicações mais novas;
• Terceiro: inovação e experimentação em longo prazo que podem incluir abordagens ou estruturas completamente novas.
20. Quando perguntamos o que os ajudaria a enfrentar os desafios do futuro em IA, as duas respostas mais frequentes não tiveram a ver diretamente com a tecnologia:
• 44% mencionaram treinamento, educação e alfabetização na redação;
• 43% mencionaram a necessidade de recrutar pessoas com novas habilidades.
21. As três áreas mais comuns para a “futura lista de ferramentas de IA dos sonhos” de nossos entrevistados foram:
• Identificação automática (coleta de notícias)
• Melhor conteúdo gerado por máquina (produção de notícias)
• Melhores mecanismos de personalização / recomendação (distribuição de notícias).
22. O maior desejo dos entrevistados é por treinamento e educação em seis áreas diferentes:
• Alfabetização em IA: para espalhar o entendimento pela organização de notícias;
• Habilidades de IA: habilidades básicas como codificação e compreensão, e treinamento de dados;
• Habilidades avançadas de IA: para promover a inovação e como parte do desenvolvimento de carreira para todos os funcionários;
• Para gestão: melhorar a conscientização geral e também entender os sistemas de IA e outros modelos de adoção de IA;
• Ética: para entender como reduzir o viés algorítmico ou de dados e para melhorar a precisão e confiabilidade;
• Insights gerais sobre IA: maior entendimento científico e social da IA e seu impacto sobre os usuários e a sociedade.
23. Apesar das pressões competitivas, havia um forte interesse em colaboração para melhorar os padrões e a inovação. Tipos de colaboração sugeridas:
• Nos departamentos das organizações de notícias;
• Entre organizações de notícias – em reportagens, mas também em desenvolvimento tecnológico;
• Em um país, mas também internacionalmente;
• Com empresas de tecnologia;
• Com startups e outras organizações;
• Com universidades / pesquisadores.
24. A IA remodelará o jornalismo de maneira, com maiores efeitos estruturais de longo prazo que refletem como a mídia está mudando por outros motivos: tecnológico, social e comercial. Em um mundo mais conectado e em rede a IA se tornará mais importante em todos os campos.
25. A IA tornará a mídia noticiosa mais ‘desigual’ e diversificada e mudará a estrutura do trabalho, fluxo de notícias e relacionamento com o público.
26. A IA fornecerá novas plataformas e ferramentas, como realidade aumentada, drones e wearables.
27. A IA impulsionará a maneira como as informações e o debate acontecem, embora muitas vezes não através da mídia. As redações terão que se adaptar às novas formas de autoridade editorial e confiança.
28. Há muito para o jornalismo aprender com outras indústrias, incluindo empresas de tecnologia e start-ups, marketing e publicidade, mas também direito, jogos e indústria da música: como eles usam a tecnologia, mudam seus fluxos de trabalho, marketing, práticas, relacionamento com usuários e ética.