Na reestreia das nossas análises, vamos pensar um pouco sobre newsletters jornalísticas. A ideia aqui é retomar as concatenações teóricas publicadas em seis edições da NFJ (338-343), quando ofereci uma reflexão sobre, primeiro, as características das newsletters e, segundo, sobre uma possível tipologia para os boletins por email.

Certo. Para tornar as coisas mais objetivas, eu proponho que essa reflexão seja guiada por três perguntas.

Vamos lá:

  • Por que as newsletters têm ganhado relevância no campo jornalístico?
  • Essa relevância se materializa de que forma no produto newsletter? 
  • Quais os seus principais aspectos técnicos, estéticos, editoriais?

Vocês já devem estar imaginando o tamanho do trabalho que teríamos para responder a essas três perguntas. Só a questão da relevância pode nos mandar para diferentes caminhos. O domínio das plataformas e a distribuição baseada em algoritmos poderia ser um deles. Mas não vamos pegar essa estrada, não. Pelo menos não agora. 

Não pretendo chegar ao fim dessa análise com essas questões respondidas, portanto. Mas isso não nos impede de rascunhar alguns caminhos possíveis. Eu sugiro começarmos pela terceira pergunta. Dependendo de até onde chegarmos, talvez possamos vislumbrar um horizonte para responder a segunda. Quanto à primeira, a jornada será longa. 

Pois bem, moçada. Vamos retomar algumas ideias. 

No artigo Media Aesthetic Features of Newsletters, Marina Zagidullina, sugere olharmos as newsletters a partir de três aspectos. As condições técnicas, o peso cultural e o design das newsletters. Vimos isso na NFJ#339. Vamos dar uma relebrada:

  1. As condições técnicas relativas à leitura de newsletters. Como as newsletters vêm se relacionando com as caixas de email. Tecnicamente mesmo. Como ela aparece no browser? E nos celulares? Quais são as características dessa relação? 
  2. O peso cultural das newsletters. Como a ideia de que o email é considerado uma tecnologia datada auxilia na sua relevância [jornalística], potencialmente?
  3. O design das newsletters e sua relação com práticas culturais. Aqui tem toda um lance de reconhecimento vs novidade. A newsletter que chega nas nossas caixas é sempre a mesma, e isso nos gera, como público, um certo prazer por reconhecê-la. E isso acontece com eficiência devido à simplicidade do design, sugere Zagidullina. Ao mesmo tempo, ela traz novidades no seu interior.

Todos esses aspectos, eu diria, convergem para outros três: simplicidade, novidade e reconhecimento. Zagidullina, quando fala da newsletter como artefato técnico, sublinha o fator limitação como uma potencialidade. Quando recebemos uma newsletter, podemos apenas rolar para cima e para baixo. Com raras exceções, o que encontramos é um corpo de texto que também oferece uma ordem de leitura que também vai de cima para baixo. Não há muito mais do que fazer além disso. Talvez clicar nos links e ver as imagens, se houver. 

Dizendo de outro modo, uma newsletter é um produto técnico SIMPLES em meio a um oceano de produtos técnicos com diferentes características e níveis de complexidade de uso. Visualizem o feed do Facebook. Quantas possibilidades de ação nós temos lá? E no Instagram? Feed, Stories, Heels, IG TV, e por aí vai. Nem vou mencionar TikToks da vida.

E de onde vem essa simplicidade? De um meio conhecido por nós há séculos: a carta. 

É aí que a proposta de Zagidullina dialoga com o estudo de Clara Almeida Santos e Ana Teresa Peixinho. Em artigo publicado na Digital Journalism em 2016, elas observaram a retomada, nas newsletters, de aspectos da epístolas do século 19. Epístolas, dizem as autoras, são “cartas abertas escritas por intelectuais e homens das letras cujo objetivo era influenciar o espaço público e fomentar o debate e a controvérsia sobre temas variados”. 

A partir da observação dos boletins do jornal digital português Observador, Santos e Peixinho traçam um paralelo entre uma prática que antecedeu o surgimento do jornalismo moderno, as ditas epístolas, e a (re)emergência das newsletters 

Ao fazer isso, destacam “inovações” que “reciclam tradições antigas que podem ser encontradas no começo da história do jornalismo”, como a “ocupação de um espaço pela opinião”, “a recuperação de uma relação de proximidade através da epistolaridade”, a reinvenção de um determinado tipo de agenda setting e, sobretudo, a reinvenção da função do gatekeeping a partir de uma marca autoral forte. 

A marca autoral está intimamente ligada ao próprio conceito de carta, certo? Afinal, se eu escrevo uma carta para vocês contando as novidades, está claro que EU estou me colocando ali como observador de determinados acontecimentos. Acontecimentos que, julgo EU, são interessantes para que vocês, os destinatários, fiquem por dentro. 

Sentiram o peso cultural da coisa? É disso que Zagidullina está falando. A newsletter nos remete ao imaginário epistolar, eu arriscaria dizer. E aí podemos adicionar a camada do reconhecimento. A carta é um meio de comunicação cujas características são facilmente reconhecidas por nós. Isso nos dá tranquilidade e controle. E familiaridade em relação ao remetente. Afinal, o usual é que conheçamos o remetente das cartas que nos são enviadas, não? É aqui que o reconhecimento ganha, no caso do jornalismo, uma outra camada de potencialidade: a proximidade e uma possível relação com o público. 

O que dá ainda mais sentido às observações de Santos e Peixinho a respeito da agenda-setting e do gatekeeping. Afinal, o jornalismo não envia uma carta para dizer como está a própria vida. Ele envia uma carta para dizer como está a vida da sociedade da qual o destinatário faz parte. E por isso retoma, potencialmente, o lugar de pautar discussões. 

Faz sentido?

Vejam o que dizem Santos e Peixinho a respeito disso:

“A respeito da hipótese de agenda setting, a análise das newsletters mostra que há um cuidado especial em sublinhar assuntos os quais, aos olhos dos autores (legitimados pelo status de editores e publishers), merecem uma atenção especial por parte do público. A seleção não é mais realizada a partir do evento, como no jornalismo tradicional, mas sim das narrativas midiáticas, e de histórias/matérias nacionais e internacionais selecionadas com base no compromisso editorial do Observador: contribuir para uma opinião pública informada e atuante, valorizando a controvérsia e a discussão aberta. Assim, os autores das newsletters agem como gatekeepers que propõem uma leitura de segunda mão da realidade previamente construída por múltiplos veículos.”

Interessante, não?

E como a simplicidade, a novidade e o reconhecimento se materializam no PRODUTO newsletter? Bem, aí entra o exercício de tipologia desenvolvido nas edições 341 e 342.

Vamos retomar isso, então.

Nas edições 341 e 342 da NFJ, eu perguntei quantos tipos de newsletters jornalísticas há por aí. Na NFJ#343, resgatei a tipologia criada por Andrew Jack neste paper publicado no Reuters Institute. Abaixo, retomo e resumo essas concatenações em uma estrutura só:

Tipologia de newsletters jonalísticas

Quanto à periodicidade

  • Diária. Tendem a ser newsletters noticiosas conectadas ao noticiário do dia. Acompanham (recuperam) a cronologia do jornalismo industrial, pois têm as 24 horas de um dia como marco cronológico. Abrem o dia falando do dia anterior. Fecham o dia falando do dia que vai chegando ao fim. Reproduzem, portanto, a lógica dos jornais impressos e também dos jornais de TV. 
    • Matutina. Não há muito o que definir aqui. Mas lá vai: newsletters, em geral noticiosas, que são enviadas logo cedo. Se demorarem muito para chegar às caixas de email dos assinantes, perdem muito do seu sentido, o que faz despencar a taxa de abertura. São boletins que simulam, portanto, o marco cronológico do jornal impresso. O Meio é um bom exemplo. 
    • Vespertina. Irmã noturna da matutina. É enviada entre o fim da tarde e começo da noite, resumindo os principais acontecimentos do dia. Simula, por sua vez, os antigos jornais impressos vespertinos. A Pílula, do Estadão, e a Durma com essa, do Nexo, são bons exemplos.
  • Semanal. Adotam um ritmo mais lento que as diárias. Tendem a ser, portanto, mais analíticas e/ou contextualizadoras/explicativas. Também se justificam quando se dedicam a uma cobertura que não tem tanto assunto para sustentar uma newsletter diária. A NFJ é um bom exemplo. Contextualiza e explica os principais acontecimentos do mundo jornalístico, no Brasil e no mundo. Um dos pontos fortes dessa periodicidade é que, assim como a diária, ela está ancorada em um ciclo que também rege a vida das pessoas: a semana. Com a vantagem de não se acumular na caixa de entrada dos assinantes, o que pode acontecer com boletins diários. 
  • Quinzenal. Tem características parecidas com a semanal. A principal diferença, eu diria, é não estar ancorada em um ciclo que costuma reger o cotidiano das pessoas. Poucas coisas são quinzenais, vocês não acham? Boletins quinzenais correm o risco de não entrar na rotina dos assinantes, e assim não serem lidos.
  • Mensal. Aqui, as limitações da quinzenal se aguçam. Não tanto por não estar associada a um ciclo temporal que faz parte das nossas vidas. Afinal, muitas coisas acontecem uma vez por mês. O problema pode ser simplesmente o grande período de tempo entre uma edição e outra, já que, no digital, trinta dias são uma eternidade. 
  • Pop-up. É um boletim com data para começar e para terminar. O Meio e a Agência Pública lançaram um sobre o WikiLeaks ano passado. Aqui, Joseph Lichterman fala sobre uma news pop-up criada pela NBC para o casamento entre Meghan e Harry. Sua vantagem é poder ter qualquer periodicidade, mas por tempo limitado.

Me deixem fazer uma pausa aqui para fazer um breve comentário. Vocês já pararam para pensar em como a periodicidade de uma newsletter está ligada à nossa própria rotina? Há quem o dia só comece depois de ler o Meio. Alguns dos nossos assinantes já disseram que o final de semana só começa depois de ler a NFJ. Ou, no meio da correria do dia, eu me dou conta que é quinta quando chega a newsletter da Latam Journalism Review. Segunda sim, segunda não, é dia de Don’t LAI to me. E se o Garimpo já aterrisou na caixa de entrada, é sinal de dar jeito no almoço. 

Nem precisaria dizer, vocês já sabem, mas isso cria familiaridade, reconhecimento. Eu reconheço aquele produto jornalístico como parte da minha rotina, do meu cotidiano. Ajuda a controlar (minimamente) os acontecimentos da minha vida, lembrar das tarefas, ordenar prioridades. E o melhor – nesses tempos complexos – é um produto simples. Evidentemente, não estou aqui negando a complexidade. Quero dizer que, em meio a uma infinidade de possibilidades técnicas de existência digital, o velho email traz aquele prazer (que para a maioria está mais no imaginário do que na memória) de abrir uma carta de um remetente conhecido.

Vamos ver o que ele me conta de novo. 

E quando ele me conta o que há de novo, há mais uma camada de reconhecimento. Pelo menos em potencial. Vamos a mais uma parte da tipologia. 

Quanto ao estilo/linguagem

  • Ponto a ponto
    • Bullets. A news Garimpo seria um bom exemplo. Lá fora, a Lunch Hour Links.
    • Capa de portal. Sabem aqueles boletins cuja diagramação simulam a capa de um site? Me vem à cabeça a news do IJNet
  • Noticiosas. Já as noticiosas, segundo Pedro Aguiar (professor da UFF, que me ajudou, ao responder a NFJ, nessa tipologia), “usam texto jornalístico regular pra resumir o noticiário do dia”. Aguiar cita a do Quartz, a BBC News Daily e o Meio.
  • Dialógicas/conversadas. Me perdoem, mas vou citar a news do Farol Jornalismo novamente. Afinal, essa é uma das marcas da NFJ. Desde a primeira edição pensei que esta newsletter chegaria em um dos lugares mais privativos da existência digital de vocês – a caixa de entrada -, e que isso é um privilégio. Nada mais natural do que usar essa oportunidade para uma boa conversa – ainda que, na real, seja uma conversa hipotética. Essa conversação que na maioria das vezes é apenas uma potência, aproxima o texto jornalístico da crônica, vocês não acham? E o que é a crônica senão um relato do cotidiano escrito de maneira autorial, às vezes bem humorada, irônica, talvez satírica, ou quem sabe lírica? Vejam a Tá todo mundo tentando, da Gaía Passarelli, por exemplo. Seria outro exemplo de newsletter conversada que belisca o mundo da crônica.

Então, todo o dia (ou toda a semana), eu recebo uma carta, que chega na minha caixa de correspondência virtual, com novidades contadas por uma pessoa, um ser humano cujo texto me acolhe, e por isso gera familiaridade, proximidade. Eu reconheço aquele texto (e aquele artefato técnico simples, o email) cotidianamente (periodicamente), e isso faz com que ele se torne parte da minha vida, marque a passagem do tempo e da existência.

E as novidades que essa carta traz dizem respeito a aspectos da vida e dos acontecimentos que me interessam, e que podem gerar impacto na mesma vida e cotidiano dos quais essa carta já faz parte. Então, eu estou muito atento ao que ela vai me contar. É aqui que entra outro aspecto determinante para a nossa tipologia. Como é feita a seleção de notícias?

Quanto à seleção/curadoria de notícias. 

  • Curadoria interna. É o clássico boletim de notícias. Todo grande portal e jornal tem o seu. O Notícias do dia, da Folha, por exemplo.
  • Curadoria externa. O Meio é um exemplo de curadoria externa, aquela que não apenas seleciona prioritariamente conteúdos de outros veículos, mas só existe para organizar as publicações feitas por terceiros. Também entram nessa categoria o Matinal e Expresso, no Sul, e a Cajueira, no Nordeste
  • Curadoria mista. Boletim que seleciona notícias tanto de dentro quanto de fora dos seus domínios. O boletim a_nexo, do Nexo, é um exemplo.

Nesse quesito, Andrew Jack, ao rascunhar a sua tipologia, divide a seleção entre automática e manual. Me permitam deixar de lado a curadoria automática. Afinal, como o próprio Jack descobriu ao fazer o seu estudo, “o fator humano é fundamental”, tal como disse a ele Tessa Muggeridge, editor de newsletters e alertas do WPost à época. 

O fato humano é fundamental justamente para sublinhar a importância da seleção. Ainda estávamos em 2016, mas o estudo de Jack conclui mais ou menos o seguinte: difícil saber qual será o futuro das newsletters, mas uma coisa veio para ficar: a curadoria como uma forma de organizar o oceano de informações espalhadas por aí. 

Então, retomando a questão para tentar fechar essa análise: como não amar um formato simples, que te traz periodicamente novidades sobre os acontecimentos que te interessam, e que, ao fazer isso, o seu autor usa um tom de conversação capaz de gerar familiaridade e reconhecimento (consequentemente, conforto e segurança), e que, além disso, não só organiza informações (às vezes de diversas fontes diferentes) como também as explica e contextualiza, e cuja entrega acontece em um ícone que emula uma cartinha? ✉️

Esta é a newsletter. E talvez por isso ela esteja ganhando relevância. Mas o papo não acaba por aqui. Até a nossa próxima análise!